CORO

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sexta-feira, 13 de outubro de 2017

João Paulo II e a paz

João Paulo II, homem que conheceu não apenas de perto, mas na sua própria carne, a realidade da guerra, como polaco submetido à bestial bota cardada da horda nazi que quis assenhorear-se do seu país, onde cometeu inenarráveis atrocidades, e do mundo, tem como um dos motivos profundos da sua acção a defesa intransigente da paz.
Neste âmbito, a figura de João Paulo II não é, assim, apenas a de um teólogo moral que pensa teoricamente a questão da paz, mas a de um homem que sabe distinguir, nas próprias entranhas, entre paz e a sua negação, a sua aniquilação, a guerra. Este homem sabe que o significado e consequência imediata da guerra como aniquilação da paz é a aniquilação de seres humanos que nunca deveriam ser aniquilados deste modo.
Não é uma questão religiosa que motiva o Papa, é uma questão antropológica universal. Ninguém deve ser aniquilado por algo como a guerra. A morte, mesmo como aniquilação, deve ser sempre algo que decorre de uma vida de paz, em paz.
Este sentido aplica-se quer a uma visão crente do mundo, como a dos cristãos, quer a uma visão não-crente. Haja ou não, depois desta vida e de uma morte, qualquer seja ela, outra qualquer forma de vida, nesta vida, a vida deve ser iniciada, continuada e terminada em paz, isto é, sem que seja sobre ela exercida qualquer forma de violência.
A ausência de violência, pelo esforço humano que implica, é, só por existir como tal, já um acto de amor. A paz é sempre função do amor. A paz é o resultado necessário do amor. Amor universal implica paz universal. De nada importa que tal não se entenda, para a realidade do que tal significa, para a realidade do que tal permite em termos da grandeza antropológica da possibilidade própria da humanidade, realidade liminar e teleologicamente capaz do melhor; e o melhor é o amor, o amor como bem-comum, não realidade predeterminada a ser universo de bestas depredadoras.
Como se pode ver ao longo das muitas mensagens endereçadas ao mundo pelo Papa Polaco, a sua preocupação com a guerra em muito extravasa os sentidos redutores que comummente se atribuem a este acto humano. A guerra para João Paulo II não é algo, um algo que é um acto, entre estados, mas uma possibilidade de perversidade que radica no mais profundo da condição ética do ser humano.
A guerra é algo de espiritual, como perversão da finalidade do espírito.
Pensamos que João Paulo II foi, é – pois o espírito que se pensa nunca morre – das poucas pessoas que entenderam o que a guerra é verdadeiramente: no limite, a guerra visa destruir a realidade, toda a realidade, assim se deixe a sua inércia própria sem freio. Este Papa sabe isto muito bem; qualquer militar sabe isto muito bem; os guerreiros também o sabem, mas como são parasitas que precisam da guerra para subsistir, aplicam tal saber no serviço à inércia destrutora da guerra, à sua função entrópica acelerada.
A assunção da guerra como algo de totalizante – a guerra total –, sem hesitações ou quaisquer considerações ético-políticas por parte de Hitler, permanece sempre como o horizonte contra o qual João Paulo II se bate incansavelmente.
O fundador do dia da Paz, Paulo VI, orientava-se por um horizonte transcendental que necessariamente opõe um sentido de guerra total a um sentido de paz total como única resposta possível à totalização do acto de guerra, à vida da humanidade como um permanente acto de guerra, de violência.
Não basta pensar teoricamente o Evangelho e Cristo como transcendentais de Paz, há que perceber, no concreto da história, que o Evangelho da paz, a boa nova da paz, se opõe à má nova de um mundo dominado pela guerra. Esta oposição não assume a forma violenta de um acto de guerra, mas ocorre na forma do diálogo: opõe-se como o absoluto de paz ao absoluto da guerra.
A tensão mundana resolve-se segundo as estruturas lógicas da racionalidade dialógica humana. O ser humano é um ser de «logos», não uma besta violenta e agressiva; é um ser que sabe que não há, logicamente, sobrevivência possível para a espécie sem que esta tenha como finalidade o bem-comum; que sabe que toda a lógica que atente contra o bem-comum em benefício de um qualquer grupo especial irá, mais cedo ou mais tarde, aniquilar a própria humanidade. É por esta razão que o diálogo é o único caminho lógico, racional, caminho de negação da violência, mas sempre de afirmação da força do bem, do bem para todos.
Não convém confundir o comum estado de omnipresente violência com o sentido tensional da realidade, que é factual como dialéctica de actos que se inter-compõem, segundo a descoberta de Heraclito: este filósofo e sábio não é um estulto defensor da guerra, pois bem sabia o custo caótico da ausência de ordem, de sentido, ele que era o filósofo do «Logos», mas o descobridor da ordem como tensão entre opostos, entre infinitas possibilidades de escolha que se oferecem à possível eleição humana. Estamos perante uma tensão entre possibilidades, todas como que “querendo” ser as eleitas. Não estamos no lugar do caos da guerra.
Ora, a guerra é caótica. Oiçamos o, não insuspeito, mas propriamente suspeito Churchill, enquanto jovem militar, ainda humilde, mas já brilhante tenente de cavalaria, habituado aos rigores da guerra, habituado a matar de perto, tocando o inimigo:
«Ah, terrível guerra, espantosa mistura de glória e de imundície, de coisas miseráveis e sublimes, se os modernos líderes esclarecidos te conhecessem mais de perto os homens simples dificilmente te voltariam a ver».[1]
É como verdadeiro «moderno líder esclarecido» que João Paulo II assume a meditação sobre a paz, iniciada pelo seu antecessor, e torna a paz no centro de reflexão para a humanidade de boa vontade, no início de cada novo ano cristão.
É sobre esta nobre tarefa que o Capitão-de-Fragata Francisco Piedade Vaz realiza o estudo intitulado João Paulo II. O compromisso pela paz, que consubstancia a investigação, levada a bom porto, conducente à obtenção do Grau de Mestre em Ciências Religiosas pela Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa, publicado pela Editorial da Cáritas Portuguesa.[2]
Formalmente, a obra apresenta um «Siglário»; um «Prefácio», da autoria de Acácio Catarino; uma «Apresentação»; uma «Introdução»; três capítulos: primeiro, «A paz no pensamento social cristão»; segundo, «As raízes da paz»; terceiro, «O compromisso pela paz»; «Conclusão»; «Bibliografia» e, em «Anexo», a Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Esta obra é uma obra sobre a paz, indubitavelmente. A sua finalidade é mesmo ser um instrumento litúrgico da paz, isto é, estar ao seu serviço, mostrando cientificamente como a preocupação teórica, prática e pragmática, pastoral, portanto, com a paz aconteceu no pontificado de João Paulo II.
Esta obra sintetiza de uma forma profunda e elegante o fundamental da doutrina sobre o tema da Paz fruto da reflexão do Papa João Paulo II.
Nela, podemos encontrar linhas de possível leitura da realidade política mundana, sustentadas sobre um realismo apenas passível de ser possuído por parte de quem viveu a experiência da guerra e dela retirou incontornáveis lições de Paz.
Num momento da história da humanidade em que, como nunca na história da conflitualidade humana, nos abeiramos do que pode bem ser a verdadeira Primeira Guerra Mundial, agora, Universal, o pensamento sobre os fundamentos da paz, como pensados por João Paulo II e generosamente postos à nossa disposição por Francisco Vaz, ganha foros de incontornável pertinência e importância.
Com eles talvez já não possamos evitar a mais destruidora das guerras, mas certamente podemos pensar no que poderia ser uma humanidade que se tivesse rendido ao Senhor da Paz, não aos também mortais senhores da guerra.
Junho de 2017
Américo Pereira



[1] Citado pela sua neta, in Winston Churchill pela sua neta Celia Sandys, Lisboa, Aletheia Editores, 2006, p. 27.
[2] Esta dissertação teve como seu orientador principal o Prof. Doutor Jerónimo Trigo e como co-orientador o Prof. Américo Pereira. Lembramos a especial importância da contribuição para a sua publicação do Senhor Engenheiro António Lages Raposo, bem como do Senhor Presidente da Cáritas Portuguesa, Prof. Eugénio Fonseca, não esquecendo todos os demais que tornaram possível e real a construção e publicação da obra.

A paz no centro do pensamento social cristão

A Igreja Católica está hoje, mais do que nunca, consciente da sua vocação de artífice da paz. Por toda a parte, com generosidade e humanidade, ela faz ouvir a sua voz sobre as questões da solidariedade, do desenvolvimento e da justiça social.
Como bem sabemos, esta vocação está no centro da mensagem universal de paz que percorre o Antigo e no Novo Testamento. A Igreja, inspirada sobretudo pelo discurso de reconciliação dos Evangelhos, tem refletido constantemente, ao longo da sua história, nas questões da paz e da concórdia, sem nunca deixar de reexaminar as suas próprias doutrinas, como por exemplo o conceito o de «guerra justa» que nasceu no contexto das violências da Idade Média.
Com a encíclica Pacem in Terris do papa João XXIII, publicada em Abril de 1963, a Igreja Católica optou por dirigir-se «a todos os homens de boa vontade» e não apenas aos crentes, para que todos se empenhassem na construção da paz, baseando-se nos princípios da verdade, da justiça, do amor e da liberdade. Deste modo a sua mensagem tornou-se mais universal e ainda hoje inspira o empenhamento social e político de muitos leigos.
Ao anunciar Cristo, a Igreja «revela o homem a si próprio», porque, em Cristo, o mistério do homem é iluminado. Por ser, instrumento de evangelização», o Pensamento Social Cristão (PSC) gera as motivações profundas para também se ocupar dos «temas» particulares nomeadamente da família e da educação, dos deveres do Estado, da vida económica, da cultura, do respeito pela vida.
Entre eles está também o tema da guerra e da paz, o que poderá levar a pensar que se trata de um tema entre muitos e, por isso, não essencial. Creio que a dúvida poderá ser superada se distinguirmos dois níveis de significado do termo «paz». Um primeiro nível, mais elementar, de paz como ausência de guerra (e, de facto, os dois termos estão associados, como se fossem um único problema, o «da guerra e da paz»); e um segundo nível, de paz como vida plenamente humana em Cristo. O PSC só secundária ou indiretamente se ocupa da paz de acordo com o primeiro significado, mas ocupa-se primária e diretamente da paz de acordo com o segundo. Não para evitar o primeiro, mas para o enfrentar sob a luz certa e do ponto de vista específico da Igreja. Portanto, o PSC «proclama a verdade sobre Cristo, sobre si mesma e sobre o homem» (Sollicitudo rei socialis, 41). Assim, ela anuncia a paz de Cristo — ou, melhor, anuncia Cristo, que é a paz. Por isso a paz não pode ser, de todo, um tema especial. Ela coincide com o próprio Cristo, coração do anúncio da Igreja.
Ora isto tem uma consequência muito importante: o PSC anuncia a paz mesmo quando não fala de paz. Mesmo quando nem sequer usa esta palavra o PSC anuncia a paz «sempre».
À medida que o magistério foi desenvolvendo a sua reflexão sobre a paz, o quadro foi-se alargando progressivamente e a paz tornou-se cada vez mais uma exigência da comunidade mundial. Contudo, simultaneamente, o tema foi também radicalmente aprofundado, de modo que a paz se revela, definitivamente, como o próprio problema do homem, que não se resolve fora da sua relação com Deus.
É a esta luz que surge, num momento e contexto muito específico, a criação do Dia Mundial da Paz, pelo papa Paulo VI, em 1967, 24 meses depois do encerramento do Concílio Vaticano II, 9 meses depois da publicação da encíclica Populorum Progressio e 7 meses depois da sua peregrinação a Fátima.

Portela, 18 de Maio de 2017

Francisco Vaz

A fé como acto político

Os termos «política» e «político» têm a sua origem no termo helénico «polis» (πόλις), que significa, numa tradução demasiado rápida, «cidade». Porquê esta classificação, nossa, de «demasiado rápida»? Porque o termo «cidade», pela equivocidade que assumiu, já não significa coisa alguma, independentemente de uma concretização nocional ou conceptual.
Não perceberemos o que está de fundamental em jogo quando nos referimos a «política», que é o termo mais geral e, assim, o que aqui tem maior relevo epistemológico, se não percebermos o que o termo «polis» significava para quem o criou. Que é isso da «polis»?
Antes de mais, e ontologicamente, quer dizer, segundo o seu ser próprio e irredutível, a «polis» é uma relação. A «polis» é sempre do âmbito do relacional: sem relação, não há «polis». Isto significa que a «polis» nunca é do âmbito do irrelacionável, algo como uma substância isolada. A haver uma substância da «polis», tem de ser do âmbito da relação. Tal tem consequências, verdadeiramente «políticas», fundamentais. Note-se que grande parte do debate que hoje acontece a nível do que vulgarmente se chama «político» ocorre ao nível da questão das relações.
Mas a «polis» é uma relação entre quê? É uma relação entre seres humanos. Apenas entre seres humanos: na nossa experiência – e não possuímos ou temos acesso a qualquer outra experiência que não esta, pessoal e intransmissível –, não há algo como «poleis», por exemplo, de anjos ou de abelhas, pese embora a constante torrente de asneiras que a respeito de tais designações vai acontecendo, criando uma equivocidade teórica com efeitos desastrosos a nível epistemológico, que se repercutem nos níveis antropológico, ético e político.
A «polis» e, consequentemente, tudo o que a ela diga respeito é sempre e só um assunto humano. Mas é o assunto humano por excelência. Porquê?
Porque a «polis» como relação é logicamente anterior ao ser humano como coisa individual. Nenhum indivíduo humano é ou pode ser logicamente anterior à «polis» porque nenhum ser humano teve a sua origem num qualquer acto espontâneo auto-produtor, isto é, precisou sempre de ser produzido por meio de uma relação entre outros seres humanos, os seus, no mínimo, progenitores biológicos; no máximo, pais, no verdadeiro sentido antropológico, ético e político do termo.
Situamo-nos perante uma questão lógica sem resolução: por um lado, a «polis» é a relação entre pelo menos dois seres humanos, pelo que, necessariamente, tem de haver pelo menos dois indivíduos humanos, previamente não relacionados, que, ao relacionarem-se, criam, literalmente criam, isso que é a «polis». Indiscutível. Só que estes dois seres humanos, para poderem ser os dois primeiros criadores de uma cidade, tiveram de surgir de um nada humano, pois, caso contrário, teriam surgido de uma relação, o que originaria uma remissão ao infinito. Percebemos, agora, a profundidade ontológica e antropológica da «política», como suporte lógico da possibilidade da humanidade e de humanidade. É sobre esta base lógica, onto-lógica, que o que isso que é a humanidade enquanto histórica assenta.
Do ponto de vista lógico, o surgimento da «polis» nunca terá explicação possível. Não admira, assim, que os velhos mitos que procuraram explicar a existência da realidade política sejam mitos metamórficos[1] ou mitos criacionistas, em que a realidade política é dada precisamente como um dado. É o caso do mito adâmico judaico-cristão, em que a «polis» é dada por criação: quando de si próprios se apercebem, já Adão e Eva estão em relação, em acto político. Não criam a «polis»; pelo contrário, no caso vertente, destroem-na.
Originalmente, então, a criação da «polis» implica a relação entre dois seres humanos não politicamente produzidos, não em termos estritamente humanos. Esta evidência aplica-se mesmo ao necessário substrato lógico das pesquisas antropogónicas e politogónicas levadas a cabo pelas escolas de tipo páleo-arqueo-antropológico: quando descobrem algo de incontrovertivelmente humano – e não, não é uma Lucy qualquer –, descobrem sempre já a humanidade pronta: é o que se nos depara em Altamira, em Lascaux, no Vale do Coa e em tantos outros lugares já inquestionavelmente humanizados.
Catar pulgas a entes formalmente semelhantes não constitui «polis», pois não é um acto de um ser humano, isto é, a menos que seja um ser humano a fazê-lo. Não há «cidades de abelhas» senão na mente de cientistas intelectualmente preguiçosos, que resolvem mal, com más metáforas projectivas, assuntos que deveriam ser bem resolvidos atribuindo o sentido próprio a cada acto. Ora, os seres humanos só podem perceber os actos de seres humanos e, ainda assim, com toda a dificuldade que a distância necessária para que haja relação política implica.
Que distância é esta? Não é evidentemente uma distância física; psicológica, apenas; afectiva, apenas; imagética, apenas; volitiva, apenas. Trata-se de uma distância segundo o ser: para que não nos confundamos em termos dos nossos seres, somos ontologicamente separados; ontologicamente «incomunicáveis» é a designação correcta.
A nossa comunicação, toda ela, é do âmbito do político, pois dá-se, e dá-se apenas, ao nível da relação entre seres humanos, como seres separados ontologicamente que somos.
Então, o que é que se comunica? «Protocolos», o que se comunica são protocolos. Linguagem, se se quiser; mas linguagem que tem de obedecer a protocolos partilháveis pelos vários seres humanos em relação. É esta a razão pela qual não podemos comunicar senão ilusoriamente, na forma do sentido, com outros seres, a menos que estes seres sejam capazes de usar os mesmos protocolos que nós: teremos de humanizar o equivalente, na abelha, ao sentido, antes de realmente comunicarmos com ela; ou, então, «abelhizar» o nosso sentido.
Percebe-se, assim, a razão profunda por que, por exemplo, é miticamente possível comunicar com anjos: é que estes são autênticos protocolos de comunicação humana, mas sem carne, isto é, são relações de sentido que transcendem a condição histórica dos seres humanos: não têm, por exemplo, de aprender línguas; comunicam ou comunicam-se directamente como sentido. Tal é impossível no nosso âmbito.
Os seres humanos são seres históricos, com tudo o que tal implica em termos de mediações, isto é, de impossibilidade de acção, qualquer seja, sem o uso de meios. Não há magia no mundo – não confundir com maravilha, que é comum (o mundo é comummente maravilhoso como mediação).
Sermos entes de mediações significa que somos entes necessariamente éticos, isto é, que têm de se movimentar autonomamente para que possam, em absoluto, ser.
É neste âmbito mediacional que se enraíza a possibilidade da «polis»: para que a relação, há pouco explorada, entre pelo menos dois seres humanos aconteça é necessário que pelo menos um deles decida – isto é, empreenda, aja, no sentido de comunicar com o outro. Este é o cerne da ética como lugar motor próprio de cada ser humano e, assim também, da «polis», na forma do acto político – de todos os actos políticos – acto irredutivelmente próprio de se aproximar do outro para com ele comunicar.
Nem sequer estamos a qualificar o acto. Pode ser um acto qualquer de aproximação, com uma finalidade qualquer. Como é evidente, o futuro desta relação incoativa depende da finalidade, mas não é isso que é o fundamental, antes, o primeiríssimo passo de aproximação. Não é sequer preciso realçar a importância que este tema tem na situação política actual do mundo, como, aliás, sempre teve.
A «polis» nasce, assim, do acto em que a interioridade ética de um qualquer sujeito humano é transcendida no sentido do estabelecimento de relação de comunicação com um outro. Mesmo que o outro recuse prosseguir a relação, já não pode escapar a ter estado em relação. A «polis» teve a extrema brevidade de dois actos, o da aproximação e o da recusa, mas, em absoluto, aconteceu.
Este exemplo teórico extremo permite perceber a força antropológica da relação que cria a «polis», logo, a força antropológica da própria «polis», da «coisa política» em acto. Compreende-se, agora, muito melhor, por que razão não pode haver humanidade sem «polis», sem «política». Também se começa a compreender muito melhor a razão pela qual a política pode ser a actividade mais nobre da humanidade, embora esta última habitualmente teime em que não o seja.
Todo o acto político tem como seu criador antropológico um acto ético, como tal, irredutível. Percebe-se, também, que uma sociedade – não é bem uma «polis» – de escravos, para que possa ser criada, depende da redução ética de esses a quem se quer escravizar, receita vetusta de todos os candidatos a tiranos.
Para que não seja o triste exemplo da recusa de relação esse que define a cidade – já está na altura de lhe chamarmos assim, porque, nesta fase da nossa reflexão, já quer dizer algo de muito diferente da má tradição invocada inicialmente –, tem de haver relação como acto de comunicação possivelmente perene entre dois sujeitos éticos, duas pessoas. Duas entidades com capacidade permanente de escolha no sentido da manutenção da relação.
Ora, é aqui, neste lugar lógico da relação entre duas entidades propriamente éticas, que surge o elemento «acto de fé»: não é possível haver comunicação entre duas entidades éticas, quaisquer, sem que haja reciprocidade de actos de fé. É evidente que esta fé não é a da ordem do teologal, mas é, no entanto, a mais básica, sem a qual não pode haver a teologal, de que a outra é a matriz antropológica.
Trata-se da fundamental confiança. Nenhum acto é humanamente possível sem que seja literalmente in-formado e logicamente precedido por um acto de confiança: ninguém age de modo algum, se não tiver confiança de que esse acto em si mesmo – o que implica as suas consequências humanamente pensáveis – é confiável: como dar o possível próximo passo, se tal passo me pode precipitar, em última análise, no nada?
Esta é a matriz lógica de toda a possibilidade de acção propriamente humana: sem tal, não há um acto humano, mas algo de mecânico ou meramente biológico, isto é, do ponto de vista antropológico, ético e político, um não-acto.
Então, na raiz mais profunda da possibilidade e da realidade da «polis» está um acto de fé.
A fé – mesmo a teologal, que diz respeito à possibilidade de estabelecimento de «polis» com Deus – assume uma dupla dimensão política: primeiro, está na base de todo o acto ético em sua transcensão criadora da política, através da efectivação da relação; segundo, como acto de relação, é, por essência, um acto político.
O que temos de nos perguntar, neste nosso momento político global que vamos vivendo, é em que estado está o acto de fé de cada instante de cada pessoa que cria isto que é a «polis» como relação entre seres humanos, em forma global, mesmo já universal.
De facto, quando se diz que as pessoas perderam «a confiança nos políticos», afirma-se algo muito mais profundo do que apenas uma perda de confiança psicológica ou política, em sentido comum: vivemos tempos em que sistematicamente o acto de fé fundamental em que assenta a coisa política se vai enfraquecendo. É mesmo a chamada “sociedade” que se está a desintegrar por falta de fé.
E é realmente «falta de fé nos “políticos”», só que os “políticos” não são um «eles», mais ou menos anónimo, somos todos nós, estes que deixámos de acreditar na possibilidade de comunicar humanamente com o outro, isto é, que deixámos de acreditar na possibilidade da cidade como acto de fé dos seres humanos nos seres humanos, de que tudo o mais não é, senão, apenas, mais ou menos superficial ancilaridade.
Perdemos a fé uns nos outros. E tal sucedeu porque a fé não é a condição lógica última para a «polis», mas é precedida por uma outra condição, mais funda, que é o necessário acto de amor como suporte para o acto ético de aproximação ao outro. E é este sentido do bem do outro como motor da minha relação para com ele que, estando moribundo, está a matar a possibilidade da fé: se não amo o outro, como acreditar na possibilidade da relação com ele?
Terminamos com uma simples e claríssima citação do Papa Francisco, do § 58 da sua Laudato Si’: «Estas acções não resolvem os problemas globais, mas confirmam que o ser humano ainda é capaz de intervir de forma positiva. Como foi criado para amar, no meio dos seus limites germinam inevitavelmente gestos de generosidade, solidariedade e desvelo.».[2]

Américo Pereira
Maio de 2017



[1] Em que, por exemplo, um ser não-humano se metamorfoseia num ser humano, assim escapando à questão lógica paradoxal da sua origem já humanamente política.
[2] PAPA FRANCISCO, Louvado sejas. Carta encíclica Laudato si’ sobre o cuidado com a casa comum, Prior Velho, Paulinas, 2015, § 8, p. 42.

Fácil violência, difícil misericórdia

Nas capas dos cadernos que, há muito tempo, recebi quando iniciei a Escola Preparatória, encontrava-se inscrita a seguinte máxima: «a violência é o argumento do incompetente».
Várias dezenas de anos de estudo da guerra demonstram-me a radical verdade de tal inscrição.
 A violência é sempre manifestação de incompetência, de uma incompetência que promana de algo muito profundo na ontologia humana, que é propriamente a negação do que há de activo na ontologia humana e que constitui, literalmente, a impotência ética, a impotência da acção no sentido do bem.
Se fosse possível a magia de tornar a prosopopaica humanidade em real pessoa, poder-se-ia dizer que esta mesma humanidade sempre soube de tal, ou, pelo menos, sempre desconfiou de tal. Esta noção de impotência ética – que é onto-antropológica, pois encontra-se na própria matriz activa do ser humano, na original fonte de todo o seu ser como acto próprio – é isso que sempre surge nos mitos cosmogónicos e cosmológicos, quando, precisamente, a cosmogonia se revela impotente para o bem, quando a cosmologia se torna numa qualquer variante de uma «caologia» de uma «cacologia»: quando o mal surge. E surge sempre.
É assim em todos os mitos a que acedi. O mal é sempre da ordem da impotência. Quando bem disfarçado, parece ser da ordem da potência, mas, olhado mais atentamente, trata-se sempre de uma potência relativamente menor, logo, na menorização que é, de uma impotência.
É a impotência do Gilgamesh, que pensa que quer a vida eterna, mas que a não agarra quando a tem na mão, literalmente. A impotência do Satã que, esperto, questiona, junto de Deus, a bondade de Job; a impotência da mulher e dos falsos amigos de Job, bons para acefalamente criticar o que não compreendem, maus para amar o que necessita de amor. A impotência de Aquiles perante o desejo de vilipendiar o seu contra-par, Heitor, vileza que recebe como prémio a morte entrada pelo único poro possível, com a divina pontaria que demonstra o que é a verdadeira potência.
Mas é também a impotência de homens e deuses perante a grandeza humana de Édipo, pelas Erínias guardado no divino santuário da ordem do mundo. Humana potência indefectível do errante e sofredor Édipo, cujos pés padecem por ancestrais impotências de deuses apenas potentes quando metamorfoseados em divinas bestas violadoras de meninas.
A impotência de Creonte perante a avassaladora potência de Antígona, fiel seguidora dos pés de seu pai, sem medo de homens, amando a ordem e, nela e com ela, os irmãos, que, na violência da desordem, um a outro se mataram.
Por fim, a impotência do diabo perante o senhorio da vontade de Jesus, manifestando, na oposição do «não» à tentação de poder dos impotentes, o modelo do que será a vitória sobre a impotência das impotências que é a morte.
E não nos enganemos: esta morte sobre que Cristo triunfa não é a «irmã Morte», de Francisco de Assis, mas a morte como aniquilação. Esta morte não tem irmãos ou relação qualquer. É o absoluto da impotência e chama-se «nada».
Potência absoluta, impotência absoluta: Deus e o nada.
Voltemos à máxima inscrita no velho caderno. Deus, que é exactamente omnipotente – percebe-se que como bem, para o bem – é, assim, esse que não usa violência. A violência é a marca do impotente, do incompetente. É porque é incapaz de criar que o impotente é violento: no ilusório modo perverso de o acto do violento ser, nada parece ser mais próximo do criar do que o destruir; ambos parecem demonstrar capacidade infinita de poder. É o que a imagem do contraste entre o «sete» divino da perfeição e o «seis» diabólico da «quase-perfeição», da paródia da perfeição, simboliza.
No entanto, de facto, toda a criação, porque toda ela introduz um absoluto de novidade no ser – irredutível a tudo o que antecedia –, é sempre manifestação de infinito poder, tal é a «energia», o acto necessário para «arrancar» o novo ao “nada” de si próprio que “substitui” (sim, a expressão é mesmo difícil, pois estamos no limiar do pensável).
Mas a energia, o acto necessário para destruir seja o que for – dado que não é possível aniquilá-lo, «nadificá-lo» – é sempre finita, logo, infinitamente menor.
Se a criação é própria dos «poietas», dos poetas do ser – como análogos de Deus, poeta infinito –, a violência é própria das bestas, dessas em que se tornam os seres humanos quando, em vez de introduzir bem no real, neste destroem bem ou impedem bem de surgir. É esta a definição do pecado, assim sinónimo de violência. É isto que somos, que eu sou quando peco: violento, impotente, incompetente.
Quanto aos que defendem algo como a «violência criadora» ou a «destruição criadora», conviria pensar no que é que há de criador em destruir um bem? Não está em causa o que pensam que é um bem, o que é subjectivo, mas algo que é ontologicamente um bem, como, por exemplo, o ser dos próprios. Ou será que, como quando as incómodas excepções ameaçam a validade dos argumentos, a eles, aos próprios, não se aplica o “conceito”?
É violência todo o acto que atenta contra um bem concreto ou possível de alguém (por extensão, de algo). Deste ponto de vista – que nos ajuda a perceber melhor e de forma realista o que em Francisco de Assis parece ser um traço puramente afectivo –, toda a nossa existência se funda em actos de violência, de que, aliás, não nos podemos, em absoluto, alienar. Biologicamente, vivemos da violência que necessariamente exercemos, como seres heterotróficos que somos, sobre outros seres.
A resposta radical extrema residiria na negação desta condição, pela nossa mesma morte. Mas esta não é também, nestas condições, uma violência? Se não é, que estamos ainda a fazer vivos?
Na realidade, estamos condicionados a viver – é esta a condição mundana, não há outra – entre a violência da negação do nosso próprio ser e a violência que temos de exercer para podermos continuar a ser. É esta condição que a expulsão do paraíso significa. No paraíso, não há violência, pois nada é destruído. A condição extra-paradisíaca significa que a vida sempre se mantém sobre o sacrifício da vida.
Então, estamos condenados à violência? De um ponto de vista biológico parece que sim. E, se fossemos apenas seres biológicos, toda a nossa vida seria esta dinâmica de violência. Aparentemente.
Mas, na pura biologia, inconsciente de se ser o que se é, há violência?
Precisamente, não. Na ratio própria da natureza não humana, o que se encontra sempre é uma dinâmica e uma cinética de força, de forças, em que o que tem de ocorrer ocorre, sem que se possa falar de algo como «violência».
A violência não pode ser sinónimo de força ou, então, tudo o que é violência em termos humanos perde o seu sentido próprio, diluído na semelhança com o uso da força na natureza não humana.
Nada melhor para desculpabilizar um SS que assassinou ou ajudou a assassinar milhares de crianças em Treblinka ou em Auschwitz, por exemplo, do que comparar a força dos seus actos com a força dos actos de um macho de leão que mata instintivamente os filhotes da leoa que naturalmente se movimenta para possuir. Tão violento é o SS quanto o leão? Então, o SS tem o mesmo mérito ou demérito que o leão.
Não foi um mundo intelectualmente alicerçado sobre este tipo de relativização o mundo, este mundo que contemporaneamente se construiu e de que agora parece haver quem finalmente se dá conta de ser como é?
Não se tem vindo a optar globalmente – não é o mesmo que «universalmente», o que seria manifestamente falso – pela facilidade da humana violência, a todos os níveis, negligenciando a trabalhosa e difícil misericórdia? Que é isso de um mundo de competitividade sem violência e necessárias vítimas? Que é isso de um mundo de valor construído não sobre a realidade de bens económicos – temos ironicamente de repetir – «reais», mas sobre a irrealidade de outros valores, por exemplo, fazendo dinheiro a partir de dinheiro, isto é, insuflando vazios símbolos, que é o que o dinheiro é?
Como posso passar o tempo todo – o acto todo – a competir, pensando que o que chega em segundo lugar é o «primeiro dos últimos», sem com isso produzir violência? Como viver na crista da onda civilizacional às custas do trabalho escravo de outros sem com isto produzir violência?
Por fim, como resolver esta situação que se criou sem ser através de um aumento – aqui, sim, como sempre na guerra – exponencial de violência, situação, aliás, para a qual nos encaminhamos a loucos passos largos e de corrida como, muito bem, o Papa Francisco tem afirmado, quando diz que já se está a viver a Terceira Guerra Mundial?
Numa divina ironia, a única possível boa saída para a inércia de violência em que nos encontramos mergulhados é a misericórdia, essa mesmo que o Papa Francisco quis que fosse meditada.
Francisco tem razão: ou interiorizamos rapidamente a dinâmica e a cinética da misericórdia ou iremos conhecer o verdadeiro poder dos impotentes, dos incapazes de misericórdia (o que Francisco nitidamente não é).
Março de 2017
Américo Pereira


Pessoa e mediação


«Quem me dera [...] contemplar tudo como se fora o viajante adulto chegado hoje à superfície da vida!
[...] Ver o polícia como Deus o vê. Reparar em tudo pela primeira vez, não apocalipticamente, como revelações do mistério, mas directamente como florações da realidade.»[1]


Quantas vezes, negando a nossa essência mesma de seres humanos, desejamos ser entidades puramente intuitivas, capazes de tudo conhecer directamente, sem mediações, sem tempo e ou espaço, sem esforço, sem dor ou sofrimento, sem sensibilidade, sem consequências negativas e com causas domináveis.[2] Tudo ver, tudo ouvir, tudo cheirar e tocar e saborear, tudo compreender: mas para tudo ser ou para tudo dominar? E persistimos nesta dilaceração entre a aspiração de um ser finito, com sonhos de infinitude, que quer experimentar infinitamente tudo e a perversa vontade de um ser finito que quer tudo ter sob o seu poder.
O modo da presença do ser humano, da pessoa, ao ser é um modo finito, potencialmente infinitizável – dado que essencialmente nada obsta a que essa presença seja continuada –, mas que não funciona sem mediações. A grande mediação é a sua própria presença, aquilo a que poderíamos chamar a sua unidade semântica própria – algo que permanecerá para sempre inabarcável, pois não pode abarcar-se a si mesma como um todo, no seu acto mesmo – fazendo com que cada acto de relação só seja possível a partir de isso mesmo que é enquanto unidade semântica própria: daqui, a incapacidade de poder haver uma real total intersecção de universos compreensivos, dado que cada universo compreensivo depende da actividade de si mesmo como unidade semântica, unidade que é diferente de presença para presença. (Note-se que isto inviabiliza qualquer intuito de absoluta objectividade, no sentido de uma objectividade estabelecida por inter-objectividade que seria uma inter-subjectividade, cuja intersecção daria a pretendida inter-objectividade.)
Assim, e logo no que de mais matricial o acto da presença de cada homem tem, o acto de relacionamento com apresenta sempre um carácter de irredutibilidade a um qualquer outro, permanecendo sempre marcado indelevelmente pela sua origem diferenciada. A primeira e fundamental mediação é a da própria matriz activa do acto humano que se relaciona. Toda a relação é mediada. Mesmo a pura intuição dá-se em um seio activo próprio que é o que é, é diferente de tudo o mais e assume essa intuição propriamente, diferentemente de qualquer outro. Uma intuição absolutamente pura e sem mediações implicaria um acto infinito, pois só este pode estar em coincidência consigo mesmo, isto é, sem qualquer mediação.
Toda a relação é mediada. Toda a relação é mediata: ela só aparece como imediata já no seio do acto que visita, aí, depois de se dar – mediadamente – aparece como imediata. E é, mas é-o só como presença no seio daquela unidade semântica, não como relação dessa unidade semântica. É desta diferença que habitualmente nos esquecemos. Mesmo a presença aparentemente mais imediata é uma presença mediada pelo modo como a relação se dá, modo esse que acaba por dissimular o carácter não imediato dessa relação. O mundo – das relações, e o mundo é sempre um mundo de relações, ou não é coisa alguma – é sempre um mundo diferente de unidade semântica para unidade semântica, de pessoa para pessoa, para utilizarmos uma linguagem menos pedante. O mundo como unidade das relações relativas à presença de cada ser humano é uni-pessoal e intransmissível, incomunicável enquanto mundo, isto é, enquanto unidade de relações e unidade de sentido. Isso nasce como possibilidade com cada pessoa, cresce com ela e com ela morre, num processo que define exactamente o carácter vital, biológico, num sentido hermenêutico muito profundo, da unidade semântica que é o homem na sua essência.
Como unidade semântica, o ser humano é sempre uma entidade relacional mediadora. Esta mediação coincide com o seu acto próprio e assume um carácter que se poderá denominar como um bíos hermeneutikós, uma vida interpretativa, uma biologia em que o bíos e o lógos formam uma unidade indissociável de acção e sentido. É esta unidade indissociável de acção e de sentido que é o grande mediador: tudo por ela passa, tudo nela assume sentido; tudo o que por ela não passar não é, pois não tem qualquer referência. A grande grelha interpretativa é o próprio ser semântico de cada um – em acto, esse ser coincide com o próprio ser, não sob a forma de uma redução finita, mas sob a forma de uma possibilidade infinita de referência, de semantização, de criação de sentido.
É sobre esta matriz semântica total que vem fundar-se o sentido da interpretação. O acto de ser de cada pessoa é uma permanente interpretação. Mas esta interpretação não é uma imposição de poder sobre o possível da relação, como que escravizando-o ainda antes da sua vinda ao ser pela e na relação. Interpretar não é vergar o que se relaciona ao molde da relação, é preparar esse molde para a adveniência do que houver que vir, se houver. Começa por ser um exercício de extrema humildade, como abertura para a adveniência de coisa nenhuma, pois esta possibilidade é não só possível como é a mais radical de todas: e é a possibilidade da in-continuidade absoluta da unidade semântica, por falta de relacionabilidade, em termos absolutos. Mas a abertura para a adveniência é um estar preparado para a positividade de uma relação que é acto, acto em que a unidade semântica do que se abre se continua e onde essa continuidade se descobre como o ponto receptor da relação que advém, adveniência que a relaciona com algo que a faz ser, ser em um acto que se vai descobrindo configurar-se como um mundo, mundo de relações.
O mundo não é o que está lá fora de mim, pois não há propriamente fora de mim, mas uma presença semântica que sou eu e faz nascer em mim dimensões que transcendem o que posso perceber como exactamente meu, apenas meu, que não posso reduzir em sentido ao meu puro sentido, pois, reduzidas a esse sentido, deixariam de ter sentido próprio. Ora, o que a presença das relações que formam em mim o mundo me faz perceber é exactamente o sentido da transcendência de parte desse mesmo sentido, transcendência que nunca poderei provar em absoluto, mas cujo sentido próprio irredutível integra a presença que em mim se apresenta.
O mundo aparece, assim, como este conjunto total de relações que constituem a presença que em acto constitui a semântica própria de isto que sou eu. Coincide com o sentido, maior ou menor, que essa mesma presença tem. Coincide com o sentido que é a unidade semântica que me constitui. O mundo sou eu, como unidade semântica.
Todo o que é relação constitui esse mundo. Esse mundo é toda a relação, não individualmente considerada – o que, aliás, não faz qualquer sentido – mas considerada na sua integração semântica total. O mundo aparece, deste modo, como uma grande trama relacional, trama activa, em que toda a relação vem ser integrada e onde ganha significado, que nunca é próprio num sentido atómico ou exclusivista, mas num sentido de imbrincação com o todo dessa trama, sentido contiguísta e inclusivista, no qual cada nova relação se torna em um novo todo que modifica o todo semântico do acto de presença de cada ser humano: não há, assim, relações ou actos isolados ou sem significado – todas as relações e todos os actos assumem significado, que é próprio porque é propriamente uma modificação no todo semântico do acto de cada pessoa. O mundo é uma possível integração infinita de relações e de elaboração semântica; um acto de integração actual com horizontes infinitos e infinita vocação.
Assim sendo, interpretar é actualizar a possibilidade infinita da relacionabilidade em sentido, isto é, em algo que constitui o ser mesmo da pessoa, não como impossível unidade entre corpo e alma ou outras – sendo corpo e alma entidades semânticas interiores ao sentido, não seus suportes –, mas como unidade de sentido, onde tudo, infinitamente tudo é chamado à relação, relação virtualmente infinita e em acto de infinitização.
A compreensão não é uma apreensão de algo alienígeno sobre o qual estendemos o império do nosso poder, mas a integração de uma unidade de sentido desgarrada em uma trama de sentido que a acolhe e a torna presente no que é em relação. Inteligir não é sair seja do que for para penetrar no interior seja do que for – como seria, aliás, isso possível? – mas encontrar o lugar próprio do sentido de algo que, integrando-se na trama significativa, passa a ter sentido: este sentido é criado pelo acto da inteligência, acto de integração semântica do que advém, mas que só advém exactamente porque a inteligência o integra. Coincide, pois, a inteligência com a abertura – mas uma abertura que é o próprio todo da unidade semântica – à relação, à adveniência.
Ao contrário do que se possa pensar, o trabalho interpretativo não reside nem em procurar esgotar campos de compreensibilidade – estes são sempre virtualmente infinitos, infinitos mesmo – nem em forçar elementos rebeldes a enquadrar-se em artificiais sínteses que mais reflectem a vontade de poder de quem as executa do que a realidade de um acto que não pode nem ser esgotado nem forçado: o que se obtém, por maior que seja a ilusão de domínio semântico do mundo, é sempre algo de não esgotado, de não acabado e de realmente independente da vontade de quem o produziu, se bem que não independente do seu acto de produção, mas invertendo as relações de poder, pois o que fica determinado é quem trabalhou na conquista do saber, pois foi por este conquistado, tendo este marcado para sempre o seu obreiro, sem que este possa dominar todas as relações que preparou ao produzir o que produziu.
Assim se vê, por exemplo, o porquê do essencial inacabamento da ciência, para grande desilusão dos que a prosseguem e perseguem não como meio de crescimento do seu acto próprio mas como forma de obtenção de poder: e o poder dado por uma ciência acabada seria o poder absoluto sobre tudo. Mas o tudo que, efectivamente e sem o saber, perseguem não é um tudo a seu modo, isto é, um tudo finito e abarcável, mas um infinito inabarcável: o progresso da ciência – no seu sentido mais lato – é infinito porque infinito é o mundo das relações que quer explorar. Não tem fim porque o seu progresso é uma actualização de relações que são virtualmente infinitas e infinitamente actualizáveis.
É esta a tarefa da pessoa como acto de mediação de mundo, mediação que é coincidente com a poética de tal mundo. Melhor ou pior poema, depende da mediação que somos.


Lisboa, Março de 2017
Américo Pereira



[1] PESSOA, Fernando, Livro do desassossego, por Bernardo Soares, Lisboa, Ática, 1982, p. 92.
[2] Este desejo, de essência política, manifesta-se hodiernamente na desenfreada corrida aos meios de comunicação, ilusoriamente imediatos e directos, que parecem fazer cair sob o nosso poder quer a distância – anulando-a – quer o tempo, anulando-o, também. A força da ilusão do poder obtido pela posse de tais meios é tal que nem se pondera a assimptótica distância em que permanecemos relativamente àquilo que é fundamental.