CORO

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sexta-feira, 13 de outubro de 2017

Pessoa e mediação


«Quem me dera [...] contemplar tudo como se fora o viajante adulto chegado hoje à superfície da vida!
[...] Ver o polícia como Deus o vê. Reparar em tudo pela primeira vez, não apocalipticamente, como revelações do mistério, mas directamente como florações da realidade.»[1]


Quantas vezes, negando a nossa essência mesma de seres humanos, desejamos ser entidades puramente intuitivas, capazes de tudo conhecer directamente, sem mediações, sem tempo e ou espaço, sem esforço, sem dor ou sofrimento, sem sensibilidade, sem consequências negativas e com causas domináveis.[2] Tudo ver, tudo ouvir, tudo cheirar e tocar e saborear, tudo compreender: mas para tudo ser ou para tudo dominar? E persistimos nesta dilaceração entre a aspiração de um ser finito, com sonhos de infinitude, que quer experimentar infinitamente tudo e a perversa vontade de um ser finito que quer tudo ter sob o seu poder.
O modo da presença do ser humano, da pessoa, ao ser é um modo finito, potencialmente infinitizável – dado que essencialmente nada obsta a que essa presença seja continuada –, mas que não funciona sem mediações. A grande mediação é a sua própria presença, aquilo a que poderíamos chamar a sua unidade semântica própria – algo que permanecerá para sempre inabarcável, pois não pode abarcar-se a si mesma como um todo, no seu acto mesmo – fazendo com que cada acto de relação só seja possível a partir de isso mesmo que é enquanto unidade semântica própria: daqui, a incapacidade de poder haver uma real total intersecção de universos compreensivos, dado que cada universo compreensivo depende da actividade de si mesmo como unidade semântica, unidade que é diferente de presença para presença. (Note-se que isto inviabiliza qualquer intuito de absoluta objectividade, no sentido de uma objectividade estabelecida por inter-objectividade que seria uma inter-subjectividade, cuja intersecção daria a pretendida inter-objectividade.)
Assim, e logo no que de mais matricial o acto da presença de cada homem tem, o acto de relacionamento com apresenta sempre um carácter de irredutibilidade a um qualquer outro, permanecendo sempre marcado indelevelmente pela sua origem diferenciada. A primeira e fundamental mediação é a da própria matriz activa do acto humano que se relaciona. Toda a relação é mediada. Mesmo a pura intuição dá-se em um seio activo próprio que é o que é, é diferente de tudo o mais e assume essa intuição propriamente, diferentemente de qualquer outro. Uma intuição absolutamente pura e sem mediações implicaria um acto infinito, pois só este pode estar em coincidência consigo mesmo, isto é, sem qualquer mediação.
Toda a relação é mediada. Toda a relação é mediata: ela só aparece como imediata já no seio do acto que visita, aí, depois de se dar – mediadamente – aparece como imediata. E é, mas é-o só como presença no seio daquela unidade semântica, não como relação dessa unidade semântica. É desta diferença que habitualmente nos esquecemos. Mesmo a presença aparentemente mais imediata é uma presença mediada pelo modo como a relação se dá, modo esse que acaba por dissimular o carácter não imediato dessa relação. O mundo – das relações, e o mundo é sempre um mundo de relações, ou não é coisa alguma – é sempre um mundo diferente de unidade semântica para unidade semântica, de pessoa para pessoa, para utilizarmos uma linguagem menos pedante. O mundo como unidade das relações relativas à presença de cada ser humano é uni-pessoal e intransmissível, incomunicável enquanto mundo, isto é, enquanto unidade de relações e unidade de sentido. Isso nasce como possibilidade com cada pessoa, cresce com ela e com ela morre, num processo que define exactamente o carácter vital, biológico, num sentido hermenêutico muito profundo, da unidade semântica que é o homem na sua essência.
Como unidade semântica, o ser humano é sempre uma entidade relacional mediadora. Esta mediação coincide com o seu acto próprio e assume um carácter que se poderá denominar como um bíos hermeneutikós, uma vida interpretativa, uma biologia em que o bíos e o lógos formam uma unidade indissociável de acção e sentido. É esta unidade indissociável de acção e de sentido que é o grande mediador: tudo por ela passa, tudo nela assume sentido; tudo o que por ela não passar não é, pois não tem qualquer referência. A grande grelha interpretativa é o próprio ser semântico de cada um – em acto, esse ser coincide com o próprio ser, não sob a forma de uma redução finita, mas sob a forma de uma possibilidade infinita de referência, de semantização, de criação de sentido.
É sobre esta matriz semântica total que vem fundar-se o sentido da interpretação. O acto de ser de cada pessoa é uma permanente interpretação. Mas esta interpretação não é uma imposição de poder sobre o possível da relação, como que escravizando-o ainda antes da sua vinda ao ser pela e na relação. Interpretar não é vergar o que se relaciona ao molde da relação, é preparar esse molde para a adveniência do que houver que vir, se houver. Começa por ser um exercício de extrema humildade, como abertura para a adveniência de coisa nenhuma, pois esta possibilidade é não só possível como é a mais radical de todas: e é a possibilidade da in-continuidade absoluta da unidade semântica, por falta de relacionabilidade, em termos absolutos. Mas a abertura para a adveniência é um estar preparado para a positividade de uma relação que é acto, acto em que a unidade semântica do que se abre se continua e onde essa continuidade se descobre como o ponto receptor da relação que advém, adveniência que a relaciona com algo que a faz ser, ser em um acto que se vai descobrindo configurar-se como um mundo, mundo de relações.
O mundo não é o que está lá fora de mim, pois não há propriamente fora de mim, mas uma presença semântica que sou eu e faz nascer em mim dimensões que transcendem o que posso perceber como exactamente meu, apenas meu, que não posso reduzir em sentido ao meu puro sentido, pois, reduzidas a esse sentido, deixariam de ter sentido próprio. Ora, o que a presença das relações que formam em mim o mundo me faz perceber é exactamente o sentido da transcendência de parte desse mesmo sentido, transcendência que nunca poderei provar em absoluto, mas cujo sentido próprio irredutível integra a presença que em mim se apresenta.
O mundo aparece, assim, como este conjunto total de relações que constituem a presença que em acto constitui a semântica própria de isto que sou eu. Coincide com o sentido, maior ou menor, que essa mesma presença tem. Coincide com o sentido que é a unidade semântica que me constitui. O mundo sou eu, como unidade semântica.
Todo o que é relação constitui esse mundo. Esse mundo é toda a relação, não individualmente considerada – o que, aliás, não faz qualquer sentido – mas considerada na sua integração semântica total. O mundo aparece, deste modo, como uma grande trama relacional, trama activa, em que toda a relação vem ser integrada e onde ganha significado, que nunca é próprio num sentido atómico ou exclusivista, mas num sentido de imbrincação com o todo dessa trama, sentido contiguísta e inclusivista, no qual cada nova relação se torna em um novo todo que modifica o todo semântico do acto de presença de cada ser humano: não há, assim, relações ou actos isolados ou sem significado – todas as relações e todos os actos assumem significado, que é próprio porque é propriamente uma modificação no todo semântico do acto de cada pessoa. O mundo é uma possível integração infinita de relações e de elaboração semântica; um acto de integração actual com horizontes infinitos e infinita vocação.
Assim sendo, interpretar é actualizar a possibilidade infinita da relacionabilidade em sentido, isto é, em algo que constitui o ser mesmo da pessoa, não como impossível unidade entre corpo e alma ou outras – sendo corpo e alma entidades semânticas interiores ao sentido, não seus suportes –, mas como unidade de sentido, onde tudo, infinitamente tudo é chamado à relação, relação virtualmente infinita e em acto de infinitização.
A compreensão não é uma apreensão de algo alienígeno sobre o qual estendemos o império do nosso poder, mas a integração de uma unidade de sentido desgarrada em uma trama de sentido que a acolhe e a torna presente no que é em relação. Inteligir não é sair seja do que for para penetrar no interior seja do que for – como seria, aliás, isso possível? – mas encontrar o lugar próprio do sentido de algo que, integrando-se na trama significativa, passa a ter sentido: este sentido é criado pelo acto da inteligência, acto de integração semântica do que advém, mas que só advém exactamente porque a inteligência o integra. Coincide, pois, a inteligência com a abertura – mas uma abertura que é o próprio todo da unidade semântica – à relação, à adveniência.
Ao contrário do que se possa pensar, o trabalho interpretativo não reside nem em procurar esgotar campos de compreensibilidade – estes são sempre virtualmente infinitos, infinitos mesmo – nem em forçar elementos rebeldes a enquadrar-se em artificiais sínteses que mais reflectem a vontade de poder de quem as executa do que a realidade de um acto que não pode nem ser esgotado nem forçado: o que se obtém, por maior que seja a ilusão de domínio semântico do mundo, é sempre algo de não esgotado, de não acabado e de realmente independente da vontade de quem o produziu, se bem que não independente do seu acto de produção, mas invertendo as relações de poder, pois o que fica determinado é quem trabalhou na conquista do saber, pois foi por este conquistado, tendo este marcado para sempre o seu obreiro, sem que este possa dominar todas as relações que preparou ao produzir o que produziu.
Assim se vê, por exemplo, o porquê do essencial inacabamento da ciência, para grande desilusão dos que a prosseguem e perseguem não como meio de crescimento do seu acto próprio mas como forma de obtenção de poder: e o poder dado por uma ciência acabada seria o poder absoluto sobre tudo. Mas o tudo que, efectivamente e sem o saber, perseguem não é um tudo a seu modo, isto é, um tudo finito e abarcável, mas um infinito inabarcável: o progresso da ciência – no seu sentido mais lato – é infinito porque infinito é o mundo das relações que quer explorar. Não tem fim porque o seu progresso é uma actualização de relações que são virtualmente infinitas e infinitamente actualizáveis.
É esta a tarefa da pessoa como acto de mediação de mundo, mediação que é coincidente com a poética de tal mundo. Melhor ou pior poema, depende da mediação que somos.


Lisboa, Março de 2017
Américo Pereira



[1] PESSOA, Fernando, Livro do desassossego, por Bernardo Soares, Lisboa, Ática, 1982, p. 92.
[2] Este desejo, de essência política, manifesta-se hodiernamente na desenfreada corrida aos meios de comunicação, ilusoriamente imediatos e directos, que parecem fazer cair sob o nosso poder quer a distância – anulando-a – quer o tempo, anulando-o, também. A força da ilusão do poder obtido pela posse de tais meios é tal que nem se pondera a assimptótica distância em que permanecemos relativamente àquilo que é fundamental.

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