«Quem me dera [...] contemplar tudo como se
fora o viajante adulto chegado hoje à superfície da vida!
[...] Ver o polícia como Deus o vê. Reparar em
tudo pela primeira vez, não apocalipticamente, como revelações do mistério, mas
directamente como florações da realidade.»[1]
Quantas
vezes, negando a nossa essência mesma de seres humanos, desejamos ser entidades
puramente intuitivas, capazes de tudo conhecer directamente, sem mediações, sem
tempo e ou espaço, sem esforço, sem dor ou sofrimento, sem sensibilidade, sem
consequências negativas e com causas domináveis.[2]
Tudo ver, tudo ouvir, tudo cheirar e tocar e saborear, tudo compreender: mas
para tudo ser ou para tudo dominar? E persistimos nesta dilaceração entre a
aspiração de um ser finito, com sonhos de infinitude, que quer experimentar
infinitamente tudo e a perversa vontade de um ser finito que quer tudo ter sob
o seu poder.
O
modo da presença do ser humano, da pessoa, ao ser é um modo finito,
potencialmente infinitizável – dado que essencialmente nada obsta a que essa
presença seja continuada –, mas que não
funciona sem mediações. A grande mediação é a sua própria presença, aquilo
a que poderíamos chamar a sua unidade semântica própria – algo que
permanecerá para sempre inabarcável, pois não pode abarcar-se a si mesma como
um todo, no seu acto mesmo – fazendo com que cada acto de relação só seja
possível a partir de isso mesmo que é enquanto unidade semântica própria:
daqui, a incapacidade de poder haver uma real total intersecção de universos
compreensivos, dado que cada universo compreensivo depende da actividade de si
mesmo como unidade semântica, unidade que é diferente de presença para
presença. (Note-se que isto inviabiliza qualquer intuito de absoluta
objectividade, no sentido de uma objectividade estabelecida por
inter-objectividade que seria uma inter-subjectividade, cuja intersecção daria
a pretendida inter-objectividade.)
Assim,
e logo no que de mais matricial o acto da presença de cada homem tem, o acto de
relacionamento com apresenta sempre um carácter de irredutibilidade a um
qualquer outro, permanecendo sempre marcado indelevelmente pela sua origem
diferenciada. A primeira e fundamental mediação é a da própria matriz activa do
acto humano que se relaciona. Toda a relação é mediada. Mesmo a pura
intuição dá-se em um seio activo próprio que é o que é, é diferente de tudo o
mais e assume essa intuição propriamente, diferentemente de qualquer outro. Uma
intuição absolutamente pura e sem mediações implicaria um acto infinito, pois
só este pode estar em coincidência consigo mesmo, isto é, sem qualquer
mediação.
Toda
a relação é mediada. Toda a relação é mediata: ela só aparece como imediata já
no seio do acto que visita, aí, depois de se dar – mediadamente – aparece como
imediata. E é, mas é-o só como presença no seio daquela unidade semântica, não
como relação dessa unidade semântica. É desta diferença que habitualmente nos
esquecemos. Mesmo a presença aparentemente mais imediata é uma presença mediada
pelo modo como a relação se dá, modo esse que acaba por dissimular o carácter
não imediato dessa relação. O mundo – das relações, e o mundo é sempre um mundo
de relações, ou não é coisa alguma – é sempre um mundo diferente de unidade
semântica para unidade semântica, de pessoa para pessoa, para utilizarmos uma
linguagem menos pedante. O mundo como unidade das relações relativas à presença
de cada ser humano é uni-pessoal e intransmissível, incomunicável enquanto
mundo, isto é, enquanto unidade de relações e unidade de sentido. Isso nasce
como possibilidade com cada pessoa, cresce com ela e com ela morre, num
processo que define exactamente o carácter vital, biológico, num sentido
hermenêutico muito profundo, da unidade semântica que é o homem na sua
essência.
Como
unidade semântica, o ser humano é sempre uma entidade relacional mediadora.
Esta mediação coincide com o seu acto próprio e assume um carácter que se
poderá denominar como um bíos hermeneutikós, uma vida interpretativa,
uma biologia em que o bíos e o lógos formam uma unidade indissociável
de acção e sentido. É esta unidade indissociável de acção e de sentido que é o
grande mediador: tudo por ela passa, tudo nela assume sentido; tudo o que por
ela não passar não é, pois não tem qualquer referência. A grande grelha
interpretativa é o próprio ser semântico de cada um – em acto, esse ser
coincide com o próprio ser, não sob a forma de uma redução finita, mas sob a
forma de uma possibilidade infinita de referência, de semantização, de criação
de sentido.
É
sobre esta matriz semântica total que vem fundar-se o sentido da interpretação.
O acto de ser de cada pessoa é uma permanente interpretação. Mas esta
interpretação não é uma imposição de poder sobre o possível da relação, como
que escravizando-o ainda antes da sua vinda ao ser pela e na relação.
Interpretar não é vergar o que se relaciona ao molde da relação, é preparar
esse molde para a adveniência do que houver que vir, se houver. Começa por ser
um exercício de extrema humildade, como abertura para a adveniência de coisa
nenhuma, pois esta possibilidade é não só possível como é a mais radical
de todas: e é a possibilidade da in-continuidade absoluta da unidade semântica,
por falta de relacionabilidade, em termos absolutos. Mas a abertura para a
adveniência é um estar preparado para a positividade de uma relação que é acto,
acto em que a unidade semântica do que se abre se continua e onde essa
continuidade se descobre como o ponto receptor da relação que advém,
adveniência que a relaciona com algo que a faz ser, ser em um acto que se vai
descobrindo configurar-se como um mundo, mundo de relações.
O
mundo não é o que está lá fora de mim, pois não há propriamente fora de mim,
mas uma presença semântica que sou eu e faz nascer em mim dimensões que
transcendem o que posso perceber como exactamente meu, apenas meu, que não
posso reduzir em sentido ao meu puro sentido, pois, reduzidas a esse sentido,
deixariam de ter sentido próprio. Ora, o que a presença das relações que formam
em mim o mundo me faz perceber é exactamente o sentido da transcendência de
parte desse mesmo sentido, transcendência que nunca poderei provar em absoluto,
mas cujo sentido próprio irredutível integra a presença que em mim se
apresenta.
O
mundo aparece, assim, como este conjunto total de relações que constituem a
presença que em acto constitui a semântica própria de isto que sou eu. Coincide
com o sentido, maior ou menor, que essa mesma presença tem. Coincide com o
sentido que é a unidade semântica que me constitui. O mundo sou eu, como unidade semântica.
Todo
o que é relação constitui esse mundo. Esse mundo é toda a relação, não
individualmente considerada – o que, aliás, não faz qualquer sentido – mas
considerada na sua integração semântica total. O mundo aparece, deste modo,
como uma grande trama relacional, trama activa, em que toda a relação vem ser
integrada e onde ganha significado, que nunca é próprio num sentido atómico ou
exclusivista, mas num sentido de imbrincação com o todo dessa trama, sentido
contiguísta e inclusivista, no qual cada nova relação se torna em um novo todo
que modifica o todo semântico do acto de presença de cada ser humano: não há,
assim, relações ou actos isolados ou sem significado – todas as relações e
todos os actos assumem significado, que é próprio porque é propriamente uma
modificação no todo semântico do acto de cada pessoa. O mundo é uma possível
integração infinita de relações e de elaboração semântica; um acto de
integração actual com horizontes infinitos e infinita vocação.
Assim
sendo, interpretar é actualizar a possibilidade infinita da relacionabilidade
em sentido, isto é, em algo que constitui o ser mesmo da pessoa, não como
impossível unidade entre corpo e alma ou outras – sendo corpo e alma entidades
semânticas interiores ao sentido, não seus suportes –, mas como unidade de sentido,
onde tudo, infinitamente tudo é chamado à relação, relação virtualmente
infinita e em acto de infinitização.
A
compreensão não é uma apreensão de algo alienígeno sobre o qual estendemos o
império do nosso poder, mas a integração de uma unidade de sentido desgarrada
em uma trama de sentido que a acolhe e a torna presente no que é em relação.
Inteligir não é sair seja do que for para penetrar no interior seja do que for
– como seria, aliás, isso possível? – mas encontrar o lugar próprio do sentido
de algo que, integrando-se na trama significativa, passa a ter sentido: este
sentido é criado pelo acto da inteligência, acto de integração semântica do que
advém, mas que só advém exactamente porque a inteligência o integra. Coincide,
pois, a inteligência com a abertura – mas uma abertura que é o próprio todo da
unidade semântica – à relação, à adveniência.
Ao
contrário do que se possa pensar, o trabalho interpretativo não reside nem em
procurar esgotar campos de compreensibilidade – estes são sempre virtualmente
infinitos, infinitos mesmo – nem em forçar elementos rebeldes a enquadrar-se em
artificiais sínteses que mais reflectem a vontade de poder de quem as executa
do que a realidade de um acto que não pode nem ser esgotado nem forçado: o que
se obtém, por maior que seja a ilusão de domínio semântico do mundo, é sempre
algo de não esgotado, de não acabado e de realmente independente da vontade de
quem o produziu, se bem que não independente do seu acto de produção, mas
invertendo as relações de poder, pois o que fica determinado é quem trabalhou
na conquista do saber, pois foi por este conquistado, tendo este marcado para
sempre o seu obreiro, sem que este possa dominar todas as relações que preparou
ao produzir o que produziu.
Assim
se vê, por exemplo, o porquê do essencial inacabamento da ciência, para grande
desilusão dos que a prosseguem e perseguem não como meio de crescimento do seu
acto próprio mas como forma de obtenção de poder: e o poder dado por uma
ciência acabada seria o poder absoluto sobre tudo. Mas o tudo que,
efectivamente e sem o saber, perseguem não é um tudo a seu modo, isto é, um
tudo finito e abarcável, mas um infinito inabarcável: o progresso da ciência –
no seu sentido mais lato – é infinito porque infinito é o mundo das relações
que quer explorar. Não tem fim porque o seu progresso é uma actualização de
relações que são virtualmente infinitas e infinitamente actualizáveis.
É
esta a tarefa da pessoa como acto de mediação de mundo, mediação que é
coincidente com a poética de tal mundo. Melhor ou pior poema, depende da
mediação que somos.
Lisboa,
Março de 2017
Américo
Pereira
[1] PESSOA,
Fernando, Livro do desassossego, por Bernardo Soares, Lisboa, Ática,
1982, p. 92.
[2]
Este desejo, de essência política, manifesta-se hodiernamente na desenfreada
corrida aos meios de comunicação, ilusoriamente imediatos e directos, que
parecem fazer cair sob o nosso poder quer a distância – anulando-a – quer o
tempo, anulando-o, também. A força da ilusão do poder obtido pela posse de tais
meios é tal que nem se pondera a assimptótica distância em que permanecemos
relativamente àquilo que é fundamental.
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