Segundo Andrea
Riccardi, foram dois os objetivos centrais que permearam a actuação tanto
administrativa como espiritual de João Paulo II durante o seu pontificado: a
extinção dos regimes comunistas no Leste europeu, sem descurar de críticas ao capitalismo principalmente em função do tratamento
reservado aos mais desfavorecidos, e a preparação da Igreja Católica para o
século XXI. «O longo pontificado João Paulo II atravessa diferentes cenários
históricos: a Guerra Fria, a globalização e o tempo do único império americano,
com a dissolução da União Soviética, o outro polo da Guerra Fria»[1].
Todavia, João Paulo II que teve de início de se confrontar com o problema da
Guerra Fria, após esta ter chegado ao fim, tem de se confrontar com vários
cenários de guerra. O Papa não deixa cair no esquecimento, nos discursos ao
corpo diplomático, no Angelus e em
todas as ocasiões, os conflitos em curso.
Perante os conflitos mundiais e das tensões,
insiste no diálogo como a «procura daquilo que é verdadeiro, bom e justo para
todos os homens»[2]:
«O
diálogo é ao mesmo tempo a busca daquilo que é e permanece comum aos homens,
mesmo nas tensões, nas oposições e nos conflitos. Neste sentido, o diálogo é
fazer de outrem um próximo; é aceitar a sua contribuição; é partilhar com ele a
responsabilidade perante a verdade e a justiça; é propor e ponderar todas as
fórmulas possíveis de honesta conciliação, procurando unir à justa defesa dos
interesses e da honra da parte a não menos justa compreensão e respeito das
razões da outra parte, bem como as exigências do bem comum a ambas»[3].
Na verdade, o tema do diálogo, sendo um tema
querido do Concílio e de Paulo VI, é também a proposta de todos os Papas do
século XX, para que se prefiram conversações e mediações ao uso das armas na
resolução dos conflitos.
João Paulo II
enquadra as relações internacionais numa «teologia das nações»[4]
segundo a qual os povos não são plenamente representados pelos Estados. Assim
sendo a comunidade internacional é para João Paulo II uma família humana cujo
bem comum internacional deve ser preservado. É por isso que a ONU é uma pedra
chave na sua estratégia de afirmação do diálogo e do direito. Sendo para João
Paulo II um lugar decisivo, como família das nações, para a construção da paz
entre os povos não admira a sua preocupação em valorizar o seu papel.
Recordamos as crises da guerra do Golfo e da Guerra do Iraque onde o Papa
propõe uma diplomacia multipolar capaz de um governo mundial baseado no diálogo
e no direito.[5]
É esta visão que expressa em 1986 quando fala em
Assis aos líderes religiosos do mundo, reunidos para orar pela paz:
«A paz é um
estaleiro aberto a todos e não somente aos especialistas, aos sábios e aos
estrategos. A paz é numa responsabilidade universal: ela passa através de
milhares de pequenos actos da vida quotidiana. De acordo com o seu modo
quotidiano de viver com os outros, os homens optam pela paz ou contra a paz…
Possam os
jovens contribuir para libertar a história dos falsos caminhos em que se
extravia a humanidade»[6].
O evento de Assis está em linha com a insistência
de João Paulo II na paz como dom de Deus, sublinhando que a oração é uma arma
de paz para todos os crentes e não só para os cristãos. Por isso o Papa reza:
«Defende-nos
da guerra! De qualquer guerra… Suplica-te o Papa, filho de uma nação que,
durante a história, foi das mais povoadas pelo horror, pela crueldade, pelo
cataclismo da guerra. Suplica-te por todos os povos do mundo»[7].
Ao reconhecer a
dignidade e a inviolabilidade da vida humana, criada à imagem e semelhança de
Deus, João Paulo II é a favor de acções não violentas para resolver conflitos.
No entanto é necessário por vezes defender o agredido ou defender-se da
agressão.[8]
É o caso, por exemplo, da legítima defesa, onde o direito de proteger a própria
vida e o dever de não prejudicar a vida de outra pessoa são de difícil
conciliação na prática. Por isso diz que «há um sentido da realidade, ao
serviço da preocupação fundamental pela justiça, que impõe a manutenção do
princípio de legítima defesa na mesma história humana»[9].
Em 1989 ao encontrar-se com
militares italianos o Papa interroga: poderá ser-se cristão e militar? Esta
pergunta encontra resposta no nr. 79 da constituição pastoral Gaudium et spes:
«Aqueles
que se dedicam ao serviço da pátria no exército, considerem-se servidores da
segurança e da liberdade dos povos; na medida em que se desempenham como convém
desta tarefa, contribuem verdadeiramente para o estabelecimento da paz»[10].
Por outro lado, na Sollicitudo rei socialis o papa diz que «cada um de nós é chamado a
ocupar o próprio lugar nesta campanha pacífica, que há de ser conduzida com
meios pacíficos, para alcançar o desenvolvimento na paz»[11].
Esta visão não é mais do que o desenvolvimento da intuição de João XXIII na Pacem in terris que já pensava que a
Igreja podia e devia animar cristãmente o empenhamento pela paz.
Conforme refere a mesma constituição pastoral «a
paz não é a mera ausência de guerra, nem se reduz ao simples equilíbrio de forças
entre os adversários»[12].
Uma vez que o ato de guerra é a concretização em acto do ódio a paz não pode
ser outra coisa que não a concretização do acto de amor. A ponte lógica estendida
por João Paulo II para ligar paz com amor é a justiça. Nessa linha refere na
mensagem do Dia Mundial da Paz de 1984:
«Se a
formação de uma sociedade política tem como objetivo a instauração da justiça,
a promoção do bem comum e a participação de todos, então a paz desta sociedade
não será realidade senão na medida em que estes três imperativos forem
respeitados. A paz não poderá desabrochar senão onde forem salvaguardadas as
exigências elementares da justiça.»[13]
Desta maneira
põe em evidência o núcleo da questão que não pode ser outro senão o
reconhecimento dos direitos humanos. Assim, remete em primeiro lugar para a
ideia de pessoa e em seguida para a ideia de lei. A partir desta perspetiva, o
Papa vê a guerra como um levar ao extremo a injustiça por considerar que a base
da injustiça é o desconhecimento do próprio homem, o que leva a que se ignorem
os seus direitos. Se este desconhecimento chega a tornar-se aniquilador então
temos a definição de guerra.
Por outro lado,
num momento em que a imprensa mundial contabilizava mais de 44 conflitos
raciais a nível mundial o Papa publica a encíclica Solicitudo rei Socialis, em 1987, que comemora o vigésimo
aniversário da Populorum progressio
de Paulo VI, cujo tema principal é a solidariedade. O interesse desta encíclica
reside no facto de não sucumbir ao simplismo de considerar raciais essas
múltiplas guerras, mas descobrir, numa análise aprofundada, que a verdadeira
raiz das guerras é o ódio ao semelhante, pelo simples fato de não ser igual em
tudo.
Outro conceito desenvolvido na encíclica é o de
pobreza. Descuidar os pobres, diz o Papa, tem um preço; esse preço é a guerra.
«Frutos
deste flagelo são o sofrimento e a morte de inumeráveis pessoas, o
esfacelamento das relações humanas e a irreparável perda de imensos patrimónios
artísticos e ambientais. A guerra agrava os sofrimentos dos pobres; mais, cria
novos pobres, destruindo os meios de sobrevivência, casas, propriedades, e
atingindo o próprio tecido do meio ambiente»[14].
De facto a
pobreza e a guerra são dois factos omnipresentes na história da humanidade, mas
não uma fatalidade. Para João Paulo II é clara a vinculação da guerra com a
injustiça e a forma como esta alimenta a pobreza pelo que apela à moderação e à
simplicidade que devem tornar-se os critérios da nossa vida diária. Apelo que
concretiza de forma clara na mensagem para o Dia Mundial da Paz de 1993:
«A moderação
e a simplicidade devem-se tornar os critérios da nossa vida diária. A
quantidade de bens, consumidos por uma parcela pequeníssima da população
mundial, produz uma procura excessiva relativamente aos recursos disponíveis. A
redução da procura constitui um primeiro passo para aliviar a pobreza, se a ela
se somarem esforços eficazes para garantir uma justa distribuição da riqueza
mundial»[15].
Em conclusão diria que para João Paulo II, promover
a Paz, particular atenção deve ser dada ao bem comum e às suas vertentes
sociais e políticas. Com efeito, quando se cultiva o bem comum, cultiva-se a
paz, pois o bem comum está intimamente ligado a todas as formas expressivas da
sociabilidade humana.
Francisco Vaz
Portela, 24 de Junho de 2017
[1] Riccardi, Andrea, João Paulo II: a biografia, Paulinas,
Lisboa, 2011 p. 445.
[2] Cf. XVI MDMP, O diálogo
para a paz, um desafio do nosso tempo, 1983, 6.
[3] Ibidem, 6.
[4] Op. Cit. p. 450.
[5] Ibidem, p. 451
[6] Assisi, Giornata mondiale di preghiera per la pace, Cidade do
Vaticano, p. 96. Citado em Riccardi, Andrea, João Paulo II: a biografia, Paulinas, Lisboa, 2011, p. 452, nota 11.
[7] Cf. Op. Cit. pp. 452-453.
[8] Os apelos pela Bósnia, em
que deseja a intervenção humanitária em defesa das populações civis situam-se
neste quadro.
[9] XVII MDMP, De um coração novo nasce a paz, 4.
[10] GS 79.
[11] João Paulo II, Solicitudo rei socialis, 47.
[12] GS 78.
[13] XV MDMP, A paz dom de Deus
confiado aos homens, 1984, 9.
[14] XXVI MDMP, Se queres a paz vai ao
encontro dos pobres, 1993, 4.
[15] Ibidem, 5.
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