Tanto quanto é possível saber-se e se
sabe efectivamente, antes de o ser humano emergir no universo, este era
constituído apenas por aquilo a que estamos acostumados a designar por
«natureza». Após o surgimento do ser humano, o universo passou a contar com uma
nova realidade, aquela que é constituída pelo produto, não-natural no mesmo
sentido em que a «natureza» é «natural», da acção prática e pragmática do ser
humano. A esta acção quer no que diz respeito ao seu acto criador quer do que
diz respeito ao resultado deste mesmo acto, e dele emancipado, chamamos
«cultura».
Como se pode facilmente perceber, no
que diz respeito quer ao trabalho quer à técnica que sempre o acompanha, são
estas duas realidades activas humanas que permitem o exercício da acção humana,
impossível sem eles.
Assim, quer a técnica quer o trabalho
são os instrumentos que permitem ao ser humano introduzir no universo a
realidade dele agora constituinte, mas radicalmente diferente da realidade
natural, que é a cultura. Não há cultura, não é possível a cultura, sem
trabalho e sem técnica.
Dependentes do que é a parte natural do
ser humano, alicerçada na mesma natureza universal geral, técnica e trabalho e
o seu produto, a cultura, produzem e constituem o que é uma segunda natureza do universo: a natureza
da criação do labor humano.
Técnica e trabalho são, assim, a força
real que permite modificar o universo num sentido impossível de acontecer sem a
presença do ser humano e do que tal presença significa em termos de radical
mudança estrutural do cosmos.
Se a inteligência, o «logos» humano
fosse apenas algo de meramente contemplativo, ainda assim, a sua ocorrência no
universo alteraria a composição deste de uma forma radical, pois, a partir de
tal acontecimento, o universo deixaria de ser uma realidade simplesmente
néscia, por mais grandiosa que fosse, pois não teria como o saber, para passar
a ser uma realidade grandiosa que tem em si a possibilidade e a realidade,
através dessa possibilidade actualizada, de saber o que é, como é e qual a
medida de grandeza de tudo isso.
Mas a realidade humana não é algo de
meramente contemplativo, não é uma simples inteligência especular que se limita
a inteligir o que é. A inteligência humana, através da vontade, que é a sua
parte operativa, pode modificar a vectorialização dos movimentos naturais do
universo. É esta mesma modificação que constitui a cultura, produto da técnica
e do trabalho.
Tal significa que não apenas todo o
juízo acerca do valor do que as coisas naturais têm para o ser humano é produto
de sua mesma inteligência, no que seria ainda um regime meramente
contemplativo, como que todo o acréscimo possível de valor (mas também todo o
possível decréscimo de valor) depende da acção cultural do ser humano, depende,
portanto, da sua técnica e do seu trabalho.
Matéria,
trabalho humano e valor económico
Sem a presença do ser humano, não há
valor algum e não pode haver valor algum. Todo o valor é resultado, único, da
valorização que o ser humano realiza quer de forma puramente contemplativa quer
através de uma acção pragmática que modifica o estado material – ou percebido
como material – de algo, impondo, assim, um novo valor a tal estado material.
Se a riqueza, antes de qualquer acto
humano que modificasse o estado inicial da natureza, não poderia ser
constituída por algo de diferente dessa mesma natureza prístina na relação com
o interesse do ser humano, assim que este começou a agir, a modificação que
introduziu na natureza, a cultura, passou a impor ao universo um novo valor,
valor esse que depende sempre da técnica usada e do trabalho realizado. Não há
outra forma de produzir valor.
Todo o valor cultural é fruto da acção
do ser humano, depende do seu trabalho e da técnica utilizada. Toda a riqueza
assim produzida, criada, é fruto do trabalho humano. O mais são «riquezas
naturais», termo que ainda hoje se utiliza comummente, e com acerto.
Deste modo, quer toda a riqueza de
origem humana quer todo o acesso possível a toda a riqueza não-humana, natural,
portanto, se deve e se deve apenas ao trabalho humano e às técnicas que o seu
desempenho implica.
Tal significa que se deve ao trabalho
humano toda a riqueza humana. Mesmo numa perspectiva religiosa, salvo a
ocorrência de milagres, que escapam a esta lógica da imanência do trabalho
humano, é a este que se deve o sustento da espécie humana: salvo milagre –
coisa rara – «o pão não cai do céu». Esta noção, provavelmente tão antiga
quanto a própria humanidade, implica uma relação fortíssima entre o ser humano
e a sua capacidade de trabalho, capacidade autónoma e que constitui o cerne
mesmo da sua possibilidade de sobrevivência.
As modernas teorias acerca da relação
do ser humano com a sua capacidade própria, individual, pessoal, de trabalho
retomam a evidência platónica, exarada na sua República, acerca da participação política de cada ser humano como
uma relação entre as suas capacidades de trabalho e as necessidades reais da
cidade, cidade que não pode subsistir sem que cada um ponha as suas capacidades
de trabalho, que incluem as suas capacidades técnicas próprias, ao serviço do
todo da cidade, no que é a versão ergonómica (governo do trabalho) do
bem-comum.
Mas, individualmente considerada, esta
capacidade, antes de ser fundamental para o bem-comum, é fundamental para quem
a possui. Mais, de certo ponto de vista, que pode até ser facilmente pervertido
– veja-se o caso da escravatura – esta capacidade é a mesma pessoa do ponto de
vista da possibilidade técnica de sobrevivência, pois, sem esta capacidade,
quer a sobrevivência do indivíduo quer a da cidade e mesmo a da espécie são
impossíveis.
Esta capacidade é, assim, inalienável ao
ser humano. A sua capacidade de trabalho coincide com ele próprio como
possibilidade autónoma de sobrevivência e de vida, mas também de vida
propriamente humana, na plenitude possível das potencialidades que esta consigo
carreia.
Assim sendo, e sendo o trabalho e a
técnica associada outra forma de dizer o ser humano como realidade activa e em
construção de si próprio individualmente e de si próprio como ente em relação,
no que é a construção da cidade, percebemos que toda a riqueza humana, toda a
cultura se deve a este labor, pelo que tal labor deve ser estimado no mais
elevado grau.
Mas tal faz perceber que todo o
trabalho e todo o fruto do trabalho se deve e pertence, ou deve pertencer, ao
seu executor. O trabalho é de quem o
realiza: a riqueza é ontologicamente
de quem a produz naquilo que tem de fruto exclusivo e inalienável e irredutível
de seu trabalho. Esta é a evidência ontológica e ergonómica sobre o
trabalho, o seu produto e a pertença do mesmo produto.
O fruto do trabalho de cada pessoa pode
ser alienado por vontade desta, no que é ou um acto de suprema generosidade, se
não tiver troca associada, ou no que é o acto
fundador do mercado e de toda a economia relacional, se tiver troca
associada. Mas quer a generosidade do dar gratuito quer a economia de troca só
são possíveis porque há uma realidade económica mais profunda e anterior e que
é a realização da novidade cultural que é
o produto do trabalho, extensão real e coisa própria do ser humano, assim
agente.
É
na radicalidade ontológica da acção que introduz novidade ontológica no mundo
que se funda o direito à propriedade,
no sentido extrínseco de relação de posse com algo que transcende a pura
interioridade humana. Mas tal é válido precisamente porque é a acção poética do
trabalho que funda essa mesma realidade exterior de que se pode ser
«proprietário»: se o quiser, e porque e apenas porque isso promanou
ontologicamente da acção que foi o meu labor, posso declarar-me dono de tal.
Mais ninguém tem esse direito e se alguém se arrogar esse direito não apenas
está a afrontar a “minha propriedade”, mas está a ofender o meu acto criador e
a mim através dele.
Tal implica que todo o bem criado
pertence, na medida exacta e directa do trabalho nele posto, a quem esse
trabalho nele pôs. E é a questão do chamado «capital» que aqui encontramos.
Mas este capital ou é fruto de trabalho
e, então, entra no esquema que acabámos de estudar, como qualquer outro produto
do trabalho, e merece o mesmo tratamento, pois todo o trabalho cria capital,
neste sentido; ou é fruto de um furto ou de um roubo, isto é, foi retirado a
quem era o seu proprietário ontologicamente entendido, e, assim sendo, é fruto
de um acto de guerra e deve ser tratado como tal.
A razão fundamental pela qual as
relações entre detentores deste capital – todo ele com origem no trabalho de
alguém – são muitas vezes conflituosas reside em que muito desse capital está
nas mãos erradas, mãos que operaram ou herdaram actos de guerra, ao
desapropriarem os donos ontológicos do capital que foi seu trabalho e cujos
resultados lhes foram desapropriados.
A única solução para corrigir tal
estado de coisas passa sempre pela lógica implantada aquando de tal
desapropriação, isto é, a lógica da
guerra. Mais cedo ou mais tarde é o que acontece, como se tem visto ao
longo da história da humanidade, em que as pessoas tendem sempre a retomar o
fruto do seu labor de que tinham sido destituídas.
À lógica da guerra apenas a lógica do bem-comum se pode opor, a
lógica segundo a qual existe uma harmonia económica e ergonómica do trabalho e
de seu produto, de modo a que o trabalho de cada um seja por si apropriado,
mesmo quando essa apropriação vem na forma indirecta de um usufruto de trabalho
de terceiros que beneficiaram previamente do nosso trabalho, num acto que não
foi de alienação do meu produto, mas de partilha, tendo em consideração que tal
partilha é a única forma de proporcionar o bem universal, directa e
indirectamente.
É para o governo da parte indirecta do
bem-comum que são necessários os chamados «governos», pois, sem estas entidades
supra-individuais ou não há possibilidade de distribuir harmonicamente a parte
de riqueza que sobra a uns e faz falta a outros ou entra-se em formas de
“distribuição” que mais não são do que os actos de guerra a que aludimos
anteriormente.
Cacém e Lisboa, Setembro de 2017
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