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sexta-feira, 13 de outubro de 2017

Trabalho e valor

Tanto quanto é possível saber-se e se sabe efectivamente, antes de o ser humano emergir no universo, este era constituído apenas por aquilo a que estamos acostumados a designar por «natureza». Após o surgimento do ser humano, o universo passou a contar com uma nova realidade, aquela que é constituída pelo produto, não-natural no mesmo sentido em que a «natureza» é «natural», da acção prática e pragmática do ser humano. A esta acção quer no que diz respeito ao seu acto criador quer do que diz respeito ao resultado deste mesmo acto, e dele emancipado, chamamos «cultura».
Como se pode facilmente perceber, no que diz respeito quer ao trabalho quer à técnica que sempre o acompanha, são estas duas realidades activas humanas que permitem o exercício da acção humana, impossível sem eles.
Assim, quer a técnica quer o trabalho são os instrumentos que permitem ao ser humano introduzir no universo a realidade dele agora constituinte, mas radicalmente diferente da realidade natural, que é a cultura. Não há cultura, não é possível a cultura, sem trabalho e sem técnica.
Dependentes do que é a parte natural do ser humano, alicerçada na mesma natureza universal geral, técnica e trabalho e o seu produto, a cultura, produzem e constituem o que é uma segunda natureza do universo: a natureza da criação do labor humano.
Técnica e trabalho são, assim, a força real que permite modificar o universo num sentido impossível de acontecer sem a presença do ser humano e do que tal presença significa em termos de radical mudança estrutural do cosmos.
Se a inteligência, o «logos» humano fosse apenas algo de meramente contemplativo, ainda assim, a sua ocorrência no universo alteraria a composição deste de uma forma radical, pois, a partir de tal acontecimento, o universo deixaria de ser uma realidade simplesmente néscia, por mais grandiosa que fosse, pois não teria como o saber, para passar a ser uma realidade grandiosa que tem em si a possibilidade e a realidade, através dessa possibilidade actualizada, de saber o que é, como é e qual a medida de grandeza de tudo isso.
Mas a realidade humana não é algo de meramente contemplativo, não é uma simples inteligência especular que se limita a inteligir o que é. A inteligência humana, através da vontade, que é a sua parte operativa, pode modificar a vectorialização dos movimentos naturais do universo. É esta mesma modificação que constitui a cultura, produto da técnica e do trabalho.
Tal significa que não apenas todo o juízo acerca do valor do que as coisas naturais têm para o ser humano é produto de sua mesma inteligência, no que seria ainda um regime meramente contemplativo, como que todo o acréscimo possível de valor (mas também todo o possível decréscimo de valor) depende da acção cultural do ser humano, depende, portanto, da sua técnica e do seu trabalho.

Matéria, trabalho humano e valor económico
Sem a presença do ser humano, não há valor algum e não pode haver valor algum. Todo o valor é resultado, único, da valorização que o ser humano realiza quer de forma puramente contemplativa quer através de uma acção pragmática que modifica o estado material – ou percebido como material – de algo, impondo, assim, um novo valor a tal estado material.
Se a riqueza, antes de qualquer acto humano que modificasse o estado inicial da natureza, não poderia ser constituída por algo de diferente dessa mesma natureza prístina na relação com o interesse do ser humano, assim que este começou a agir, a modificação que introduziu na natureza, a cultura, passou a impor ao universo um novo valor, valor esse que depende sempre da técnica usada e do trabalho realizado. Não há outra forma de produzir valor.
Todo o valor cultural é fruto da acção do ser humano, depende do seu trabalho e da técnica utilizada. Toda a riqueza assim produzida, criada, é fruto do trabalho humano. O mais são «riquezas naturais», termo que ainda hoje se utiliza comummente, e com acerto.
Deste modo, quer toda a riqueza de origem humana quer todo o acesso possível a toda a riqueza não-humana, natural, portanto, se deve e se deve apenas ao trabalho humano e às técnicas que o seu desempenho implica.
Tal significa que se deve ao trabalho humano toda a riqueza humana. Mesmo numa perspectiva religiosa, salvo a ocorrência de milagres, que escapam a esta lógica da imanência do trabalho humano, é a este que se deve o sustento da espécie humana: salvo milagre – coisa rara – «o pão não cai do céu». Esta noção, provavelmente tão antiga quanto a própria humanidade, implica uma relação fortíssima entre o ser humano e a sua capacidade de trabalho, capacidade autónoma e que constitui o cerne mesmo da sua possibilidade de sobrevivência.
As modernas teorias acerca da relação do ser humano com a sua capacidade própria, individual, pessoal, de trabalho retomam a evidência platónica, exarada na sua República, acerca da participação política de cada ser humano como uma relação entre as suas capacidades de trabalho e as necessidades reais da cidade, cidade que não pode subsistir sem que cada um ponha as suas capacidades de trabalho, que incluem as suas capacidades técnicas próprias, ao serviço do todo da cidade, no que é a versão ergonómica (governo do trabalho) do bem-comum.
Mas, individualmente considerada, esta capacidade, antes de ser fundamental para o bem-comum, é fundamental para quem a possui. Mais, de certo ponto de vista, que pode até ser facilmente pervertido – veja-se o caso da escravatura – esta capacidade é a mesma pessoa do ponto de vista da possibilidade técnica de sobrevivência, pois, sem esta capacidade, quer a sobrevivência do indivíduo quer a da cidade e mesmo a da espécie são impossíveis.
Esta capacidade é, assim, inalienável ao ser humano. A sua capacidade de trabalho coincide com ele próprio como possibilidade autónoma de sobrevivência e de vida, mas também de vida propriamente humana, na plenitude possível das potencialidades que esta consigo carreia.
Assim sendo, e sendo o trabalho e a técnica associada outra forma de dizer o ser humano como realidade activa e em construção de si próprio individualmente e de si próprio como ente em relação, no que é a construção da cidade, percebemos que toda a riqueza humana, toda a cultura se deve a este labor, pelo que tal labor deve ser estimado no mais elevado grau.
Mas tal faz perceber que todo o trabalho e todo o fruto do trabalho se deve e pertence, ou deve pertencer, ao seu executor. O trabalho é de quem o realiza: a riqueza é ontologicamente de quem a produz naquilo que tem de fruto exclusivo e inalienável e irredutível de seu trabalho. Esta é a evidência ontológica e ergonómica sobre o trabalho, o seu produto e a pertença do mesmo produto.
O fruto do trabalho de cada pessoa pode ser alienado por vontade desta, no que é ou um acto de suprema generosidade, se não tiver troca associada, ou no que é o acto fundador do mercado e de toda a economia relacional, se tiver troca associada. Mas quer a generosidade do dar gratuito quer a economia de troca só são possíveis porque há uma realidade económica mais profunda e anterior e que é a realização da novidade cultural que é o produto do trabalho, extensão real e coisa própria do ser humano, assim agente.
É na radicalidade ontológica da acção que introduz novidade ontológica no mundo que se funda o direito à propriedade, no sentido extrínseco de relação de posse com algo que transcende a pura interioridade humana. Mas tal é válido precisamente porque é a acção poética do trabalho que funda essa mesma realidade exterior de que se pode ser «proprietário»: se o quiser, e porque e apenas porque isso promanou ontologicamente da acção que foi o meu labor, posso declarar-me dono de tal. Mais ninguém tem esse direito e se alguém se arrogar esse direito não apenas está a afrontar a “minha propriedade”, mas está a ofender o meu acto criador e a mim através dele.
Tal implica que todo o bem criado pertence, na medida exacta e directa do trabalho nele posto, a quem esse trabalho nele pôs. E é a questão do chamado «capital» que aqui encontramos.
Mas este capital ou é fruto de trabalho e, então, entra no esquema que acabámos de estudar, como qualquer outro produto do trabalho, e merece o mesmo tratamento, pois todo o trabalho cria capital, neste sentido; ou é fruto de um furto ou de um roubo, isto é, foi retirado a quem era o seu proprietário ontologicamente entendido, e, assim sendo, é fruto de um acto de guerra e deve ser tratado como tal.
A razão fundamental pela qual as relações entre detentores deste capital – todo ele com origem no trabalho de alguém – são muitas vezes conflituosas reside em que muito desse capital está nas mãos erradas, mãos que operaram ou herdaram actos de guerra, ao desapropriarem os donos ontológicos do capital que foi seu trabalho e cujos resultados lhes foram desapropriados.
A única solução para corrigir tal estado de coisas passa sempre pela lógica implantada aquando de tal desapropriação, isto é, a lógica da guerra. Mais cedo ou mais tarde é o que acontece, como se tem visto ao longo da história da humanidade, em que as pessoas tendem sempre a retomar o fruto do seu labor de que tinham sido destituídas.
À lógica da guerra apenas a lógica do bem-comum se pode opor, a lógica segundo a qual existe uma harmonia económica e ergonómica do trabalho e de seu produto, de modo a que o trabalho de cada um seja por si apropriado, mesmo quando essa apropriação vem na forma indirecta de um usufruto de trabalho de terceiros que beneficiaram previamente do nosso trabalho, num acto que não foi de alienação do meu produto, mas de partilha, tendo em consideração que tal partilha é a única forma de proporcionar o bem universal, directa e indirectamente.
É para o governo da parte indirecta do bem-comum que são necessários os chamados «governos», pois, sem estas entidades supra-individuais ou não há possibilidade de distribuir harmonicamente a parte de riqueza que sobra a uns e faz falta a outros ou entra-se em formas de “distribuição” que mais não são do que os actos de guerra a que aludimos anteriormente.
Cacém e Lisboa, Setembro de 2017

Américo Pereira

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