O termo helénico «ergon» pode ser
traduzido para a linguagem e contexto cultural e civilizacional hodierno como
«trabalho». De facto, o seu sentido original aponta para o efeito de algo que
lhe é interior e anterior ontologicamente e que é talvez o termo mais
importante da nossa tradição intelectual ocidental, o termo «energeia», de onde
quase transliterámos «energia», mas que tem como sentido semântico-ontológico
profundo «acto».
O
«ergon», trabalho e efeito-obra desse trabalho, é fruto de uma «energeia», de
um acto.
O termo «nomos» tem o valor comum de
«lei», em sentido geral. Lei não sobretudo como coisa humana e «positiva», como
hodiernamente se pensa, mas como coisa cósmica, e mesmo trans-cósmica, como
fundamento do próprio cosmos. A lei é isso
que ergue isto que é o movimento que
constitui o mundo propriamente em e como mundo,
em algo de ordenado. Sem lei, neste
sentido, não há mundo, há caos.
Compreende-se, então, o sentido
profundo de uma «anarquia», que não é algo como um mundo, que seria mundo, ainda
que sem legalidade humana-positiva, mas que é, antes, um não-mundo.
A lei não é função de juízo humano,
qualquer, de qualquer forma, mas constitui o «princípio» que impede o mundo, o
cosmos, de cair no caos, indiscernível, precisamente por causa da falta de
ordem, do nada.
É um nada de sentido, e um nada de
sentido em termos humanos é um nada absoluto de sentido, pois o ser humano ou é
algo da ordem do sentido ou não é coisa alguma como propriamente humano. Não há
sentido para as bestas. Para estas, não há mundo. O que há, nas suas múltiplas
dimensões, é algo que nunca saberemos e as especulações projectivas são todas
epistemologicamente inválidas.
Há, pois, uma ergonomia do acto humano, que situa ontologicamente os limites para
a actualização da potencialidade humana. Esta actualização é toda a cultura em
acto de produção da diferença ontológica que promana da agência humana, mas é
também a cultura como produto presente e produto passado, monumental e memorial
da acção humana. É, ainda, toda a possível cultura, que, realizada, será a
concretização futura eventual da humanidade.
O ser humano não pode ultrapassar tais
limites – ou não seriam limites –, pois, se situar a sua acção abaixo do limite
inferior que ergonomicamente é o seu, transforma-se numa besta: não ultrapassa
o limite, metamorfoseia-se em algo que já não é propriamente humano; por outro
lado, por mais que faça, apenas alarga o
domínio da sua actualidade, da cultura, portanto, sem que ultrapasse o
limite. Digamos que acompanha o desvendar do horizonte, à medida que
infinitamente dele se aproxima. Tal não é um horizonte, em seu sentido
geográfico, que é alcançável, mas constitui, antes, uma assíntota, que coincide
com a infinita vocação humana para o aperfeiçoamento próprio.
Aqui, nestes actos, o ser humano não se
metamorfoseia como anteriormente, metamorfoseia o mundo, no que é, já foi dito,
a poética cultural universal da humanidade.
Ora, esta ergonomia, se trabalhada por
uma correcta «ergologia», isto é, se criticamente analisada, permite-nos perceber
que tais extremos de acção humana como possibilidade tomam, no concreto mundano
da acção, precisamente duas concretizações: a proximidade com o limite inferior
constitui o parasitismo humano,
consubstanciado na figura ética e política do tirano.
Por outro lado, o bem-comum é a própria aproximação à perfeição do acto humano,
considerado quer na sua dimensão individual – ética – quer na sua dimensão
colectiva – política.
Deste ponto de vista, que é ontológico,
aplicado ao ser humano, sendo, assim, onto-antropológico, toda a acção humana se
pode desenrolar e se desenrola, de facto, entre as realidades do parasitismo
humano/tirania e do bem-comum, que, para usar um termo com ressonância também
biológica como o termo «parasitismo», se pode designar por «simbiose», simbiose
total e perfeita. Nada menos.
O bem-comum é a simbiose perfeita da
vida ética e política da humanidade. Não é uma utopia, mas isso que, em acto,
resulta da acção de cada um e de todos em prol do exclusivo bem-comum, que é,
imediata e concomitantemente, também, o bem de cada um, individualmente
considerado.
Neste ambiente verdadeiramente
«ecológico», pois é o único que cuida do bem da casa, que constitui o seu
sentido, o seu «logos», o melhor bem possível e real de todos é necessariamente
o melhor bem de cada um. Tal realidade, que parece utópica, mas não é,
reafirmamos, pode perceber-se ao ouvir, por exemplo, uma sinfonia tocada em
humana perfeição, acto em que o todo ocorre como concretização do melhor
possível, assim cada um dos todos recebendo também o melhor possível individual
como recompensa. Note-se que a recompensa é o próprio acto da sinfonia e não
outra qualquer coisa diferida, material ou não-material.
O acto de cada ser humano constitui a
sua única real recompensa. Não há outra, nunca haverá outra. O céu, assuma ele
a forma que assumir, é o bem próprio de cada acto, em seu mesmo absoluto. O mal
é a ausência absoluta desse mesmo possível bem. Esta ausência é a definição
ontológica de inferno, quer em termos religiosos quer em termos laicos.
Ora, céu e inferno estão presentes como
possíveis no «acto nosso de cada dia» também como possível.
Concretizemos.
Quando recebo um bem da parte de um
outro ser humano, de cuja produção o outro vive, e não lhe retribuo de forma
justa o trabalho feito, estou literalmente a roubar possibilidade própria a
esse outro; a guardar para mim um bem alheio, próprio para um outro,
inalienavelmente seu como possibilidade
própria, dado que é o que permite que esse outro possa ser e seja. Ora,
este acto é sempre parasitismo.
Este parasitismo, próprio de um nível
bestial da biologia e neste nível perfeitamente conforme com a sua melhor
possibilidade, é, no nível humano, não uma sobrevivência atávica de uma
bestialidade, que assim se compartilha, como se compartilha, por exemplo, a
ventilação com os cães, que também ventilam, mas algo que, sendo humanamente
possível, como próprio humano e não como sobrevivência de algo de alienígena,
constitui a possibilidade humana de se ser besta.
Ora, este poder ser besta é a pior
possibilidade propriamente humana que a humanidade possui. É humanamente
possível, mas é humanamente degradante, conduzindo, no fim, por seu triunfo, a
humanidade à aniquilação como propriamente humanidade: uma humanidade de
predadores ou de parasitas – e a predação é uma forma de parasitismo, em termos
humanos, não o sendo em termos das bestas não-humanas – não é verdadeiramente
uma humanidade.
O parasitismo humano é
antropologicamente aviltante, pois anula a possibilidade de bem próprio nesse
que parasita. É o ser humano a negar a humanidade, que é também a sua, ao outro
ser humano.
Num mundo em que foi sempre o regime de
parasitismo humano que imperou, que conheceu por breve tempo a procura de
realização de um forma de relacionamento entre as pessoas que anulasse tal
parasitismo, tendo como fim orientador a possibilidade não-utópica do
bem-comum, que está a retornar despudoradamente ao reino universal do
parasitismo, não restam senão dois caminhos antitéticos: ou se opta
universalmente pela lógica do bem-comum e, assim, a humanidade terá viabilidade
como humanidade e não apenas como facto histórico de bestas com forma humana ou
terá de dar a provar aos parasitas o gosto da sua própria receita, o que
significará uma tragédia de imensas proporções, de que pode ou não emergir uma verdadeira humanidade, podendo, mesmo, não
emergir humanidade alguma.
Não fujamos às trágicas consequências
do que pode estar aqui em jogo: o que se está a afirmar é a triste
possibilidade segundo a qual pode ter de ser necessário eliminar todos os
parasitas humanos para que a restante humanidade possa sobreviver. Tal é
terrível, mas tal pode tornar-se na eventual trágica opção melhor viável.
Fevereiro de 2017
Américo Pereira
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