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sexta-feira, 13 de outubro de 2017

Parasitismo e bem-comum Os extremos ergonómicos do acto humano

O termo helénico «ergon» pode ser traduzido para a linguagem e contexto cultural e civilizacional hodierno como «trabalho». De facto, o seu sentido original aponta para o efeito de algo que lhe é interior e anterior ontologicamente e que é talvez o termo mais importante da nossa tradição intelectual ocidental, o termo «energeia», de onde quase transliterámos «energia», mas que tem como sentido semântico-ontológico profundo «acto».
O «ergon», trabalho e efeito-obra desse trabalho, é fruto de uma «energeia», de um acto.
O termo «nomos» tem o valor comum de «lei», em sentido geral. Lei não sobretudo como coisa humana e «positiva», como hodiernamente se pensa, mas como coisa cósmica, e mesmo trans-cósmica, como fundamento do próprio cosmos. A lei é isso que ergue isto que é o movimento que constitui o mundo propriamente em e como mundo, em algo de ordenado. Sem lei, neste sentido, não há mundo, há caos.
Compreende-se, então, o sentido profundo de uma «anarquia», que não é algo como um mundo, que seria mundo, ainda que sem legalidade humana-positiva, mas que é, antes, um não-mundo.
A lei não é função de juízo humano, qualquer, de qualquer forma, mas constitui o «princípio» que impede o mundo, o cosmos, de cair no caos, indiscernível, precisamente por causa da falta de ordem, do nada.
É um nada de sentido, e um nada de sentido em termos humanos é um nada absoluto de sentido, pois o ser humano ou é algo da ordem do sentido ou não é coisa alguma como propriamente humano. Não há sentido para as bestas. Para estas, não há mundo. O que há, nas suas múltiplas dimensões, é algo que nunca saberemos e as especulações projectivas são todas epistemologicamente inválidas.
Há, pois, uma ergonomia do acto humano, que situa ontologicamente os limites para a actualização da potencialidade humana. Esta actualização é toda a cultura em acto de produção da diferença ontológica que promana da agência humana, mas é também a cultura como produto presente e produto passado, monumental e memorial da acção humana. É, ainda, toda a possível cultura, que, realizada, será a concretização futura eventual da humanidade.
O ser humano não pode ultrapassar tais limites – ou não seriam limites –, pois, se situar a sua acção abaixo do limite inferior que ergonomicamente é o seu, transforma-se numa besta: não ultrapassa o limite, metamorfoseia-se em algo que já não é propriamente humano; por outro lado, por mais que faça, apenas alarga o domínio da sua actualidade, da cultura, portanto, sem que ultrapasse o limite. Digamos que acompanha o desvendar do horizonte, à medida que infinitamente dele se aproxima. Tal não é um horizonte, em seu sentido geográfico, que é alcançável, mas constitui, antes, uma assíntota, que coincide com a infinita vocação humana para o aperfeiçoamento próprio.
Aqui, nestes actos, o ser humano não se metamorfoseia como anteriormente, metamorfoseia o mundo, no que é, já foi dito, a poética cultural universal da humanidade.
Ora, esta ergonomia, se trabalhada por uma correcta «ergologia», isto é, se criticamente analisada, permite-nos perceber que tais extremos de acção humana como possibilidade tomam, no concreto mundano da acção, precisamente duas concretizações: a proximidade com o limite inferior constitui o parasitismo humano, consubstanciado na figura ética e política do tirano.
Por outro lado, o bem-comum é a própria aproximação à perfeição do acto humano, considerado quer na sua dimensão individual – ética – quer na sua dimensão colectiva – política.
Deste ponto de vista, que é ontológico, aplicado ao ser humano, sendo, assim, onto-antropológico, toda a acção humana se pode desenrolar e se desenrola, de facto, entre as realidades do parasitismo humano/tirania e do bem-comum, que, para usar um termo com ressonância também biológica como o termo «parasitismo», se pode designar por «simbiose», simbiose total e perfeita. Nada menos.
O bem-comum é a simbiose perfeita da vida ética e política da humanidade. Não é uma utopia, mas isso que, em acto, resulta da acção de cada um e de todos em prol do exclusivo bem-comum, que é, imediata e concomitantemente, também, o bem de cada um, individualmente considerado.
Neste ambiente verdadeiramente «ecológico», pois é o único que cuida do bem da casa, que constitui o seu sentido, o seu «logos», o melhor bem possível e real de todos é necessariamente o melhor bem de cada um. Tal realidade, que parece utópica, mas não é, reafirmamos, pode perceber-se ao ouvir, por exemplo, uma sinfonia tocada em humana perfeição, acto em que o todo ocorre como concretização do melhor possível, assim cada um dos todos recebendo também o melhor possível individual como recompensa. Note-se que a recompensa é o próprio acto da sinfonia e não outra qualquer coisa diferida, material ou não-material.
O acto de cada ser humano constitui a sua única real recompensa. Não há outra, nunca haverá outra. O céu, assuma ele a forma que assumir, é o bem próprio de cada acto, em seu mesmo absoluto. O mal é a ausência absoluta desse mesmo possível bem. Esta ausência é a definição ontológica de inferno, quer em termos religiosos quer em termos laicos.
Ora, céu e inferno estão presentes como possíveis no «acto nosso de cada dia» também como possível.
Concretizemos.
Quando recebo um bem da parte de um outro ser humano, de cuja produção o outro vive, e não lhe retribuo de forma justa o trabalho feito, estou literalmente a roubar possibilidade própria a esse outro; a guardar para mim um bem alheio, próprio para um outro, inalienavelmente seu como possibilidade própria, dado que é o que permite que esse outro possa ser e seja. Ora, este acto é sempre parasitismo.
Este parasitismo, próprio de um nível bestial da biologia e neste nível perfeitamente conforme com a sua melhor possibilidade, é, no nível humano, não uma sobrevivência atávica de uma bestialidade, que assim se compartilha, como se compartilha, por exemplo, a ventilação com os cães, que também ventilam, mas algo que, sendo humanamente possível, como próprio humano e não como sobrevivência de algo de alienígena, constitui a possibilidade humana de se ser besta.
Ora, este poder ser besta é a pior possibilidade propriamente humana que a humanidade possui. É humanamente possível, mas é humanamente degradante, conduzindo, no fim, por seu triunfo, a humanidade à aniquilação como propriamente humanidade: uma humanidade de predadores ou de parasitas – e a predação é uma forma de parasitismo, em termos humanos, não o sendo em termos das bestas não-humanas – não é verdadeiramente uma humanidade.
O parasitismo humano é antropologicamente aviltante, pois anula a possibilidade de bem próprio nesse que parasita. É o ser humano a negar a humanidade, que é também a sua, ao outro ser humano.
Num mundo em que foi sempre o regime de parasitismo humano que imperou, que conheceu por breve tempo a procura de realização de um forma de relacionamento entre as pessoas que anulasse tal parasitismo, tendo como fim orientador a possibilidade não-utópica do bem-comum, que está a retornar despudoradamente ao reino universal do parasitismo, não restam senão dois caminhos antitéticos: ou se opta universalmente pela lógica do bem-comum e, assim, a humanidade terá viabilidade como humanidade e não apenas como facto histórico de bestas com forma humana ou terá de dar a provar aos parasitas o gosto da sua própria receita, o que significará uma tragédia de imensas proporções, de que pode ou não emergir uma verdadeira humanidade, podendo, mesmo, não emergir humanidade alguma.
Não fujamos às trágicas consequências do que pode estar aqui em jogo: o que se está a afirmar é a triste possibilidade segundo a qual pode ter de ser necessário eliminar todos os parasitas humanos para que a restante humanidade possa sobreviver. Tal é terrível, mas tal pode tornar-se na eventual trágica opção melhor viável.
Esperemos que os seres humanos tenham o claro discernimento de passar a optar pelo bem-comum.
Fevereiro de 2017
Américo Pereira


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