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sexta-feira, 13 de outubro de 2017

João Paulo II e a paz

João Paulo II, homem que conheceu não apenas de perto, mas na sua própria carne, a realidade da guerra, como polaco submetido à bestial bota cardada da horda nazi que quis assenhorear-se do seu país, onde cometeu inenarráveis atrocidades, e do mundo, tem como um dos motivos profundos da sua acção a defesa intransigente da paz.
Neste âmbito, a figura de João Paulo II não é, assim, apenas a de um teólogo moral que pensa teoricamente a questão da paz, mas a de um homem que sabe distinguir, nas próprias entranhas, entre paz e a sua negação, a sua aniquilação, a guerra. Este homem sabe que o significado e consequência imediata da guerra como aniquilação da paz é a aniquilação de seres humanos que nunca deveriam ser aniquilados deste modo.
Não é uma questão religiosa que motiva o Papa, é uma questão antropológica universal. Ninguém deve ser aniquilado por algo como a guerra. A morte, mesmo como aniquilação, deve ser sempre algo que decorre de uma vida de paz, em paz.
Este sentido aplica-se quer a uma visão crente do mundo, como a dos cristãos, quer a uma visão não-crente. Haja ou não, depois desta vida e de uma morte, qualquer seja ela, outra qualquer forma de vida, nesta vida, a vida deve ser iniciada, continuada e terminada em paz, isto é, sem que seja sobre ela exercida qualquer forma de violência.
A ausência de violência, pelo esforço humano que implica, é, só por existir como tal, já um acto de amor. A paz é sempre função do amor. A paz é o resultado necessário do amor. Amor universal implica paz universal. De nada importa que tal não se entenda, para a realidade do que tal significa, para a realidade do que tal permite em termos da grandeza antropológica da possibilidade própria da humanidade, realidade liminar e teleologicamente capaz do melhor; e o melhor é o amor, o amor como bem-comum, não realidade predeterminada a ser universo de bestas depredadoras.
Como se pode ver ao longo das muitas mensagens endereçadas ao mundo pelo Papa Polaco, a sua preocupação com a guerra em muito extravasa os sentidos redutores que comummente se atribuem a este acto humano. A guerra para João Paulo II não é algo, um algo que é um acto, entre estados, mas uma possibilidade de perversidade que radica no mais profundo da condição ética do ser humano.
A guerra é algo de espiritual, como perversão da finalidade do espírito.
Pensamos que João Paulo II foi, é – pois o espírito que se pensa nunca morre – das poucas pessoas que entenderam o que a guerra é verdadeiramente: no limite, a guerra visa destruir a realidade, toda a realidade, assim se deixe a sua inércia própria sem freio. Este Papa sabe isto muito bem; qualquer militar sabe isto muito bem; os guerreiros também o sabem, mas como são parasitas que precisam da guerra para subsistir, aplicam tal saber no serviço à inércia destrutora da guerra, à sua função entrópica acelerada.
A assunção da guerra como algo de totalizante – a guerra total –, sem hesitações ou quaisquer considerações ético-políticas por parte de Hitler, permanece sempre como o horizonte contra o qual João Paulo II se bate incansavelmente.
O fundador do dia da Paz, Paulo VI, orientava-se por um horizonte transcendental que necessariamente opõe um sentido de guerra total a um sentido de paz total como única resposta possível à totalização do acto de guerra, à vida da humanidade como um permanente acto de guerra, de violência.
Não basta pensar teoricamente o Evangelho e Cristo como transcendentais de Paz, há que perceber, no concreto da história, que o Evangelho da paz, a boa nova da paz, se opõe à má nova de um mundo dominado pela guerra. Esta oposição não assume a forma violenta de um acto de guerra, mas ocorre na forma do diálogo: opõe-se como o absoluto de paz ao absoluto da guerra.
A tensão mundana resolve-se segundo as estruturas lógicas da racionalidade dialógica humana. O ser humano é um ser de «logos», não uma besta violenta e agressiva; é um ser que sabe que não há, logicamente, sobrevivência possível para a espécie sem que esta tenha como finalidade o bem-comum; que sabe que toda a lógica que atente contra o bem-comum em benefício de um qualquer grupo especial irá, mais cedo ou mais tarde, aniquilar a própria humanidade. É por esta razão que o diálogo é o único caminho lógico, racional, caminho de negação da violência, mas sempre de afirmação da força do bem, do bem para todos.
Não convém confundir o comum estado de omnipresente violência com o sentido tensional da realidade, que é factual como dialéctica de actos que se inter-compõem, segundo a descoberta de Heraclito: este filósofo e sábio não é um estulto defensor da guerra, pois bem sabia o custo caótico da ausência de ordem, de sentido, ele que era o filósofo do «Logos», mas o descobridor da ordem como tensão entre opostos, entre infinitas possibilidades de escolha que se oferecem à possível eleição humana. Estamos perante uma tensão entre possibilidades, todas como que “querendo” ser as eleitas. Não estamos no lugar do caos da guerra.
Ora, a guerra é caótica. Oiçamos o, não insuspeito, mas propriamente suspeito Churchill, enquanto jovem militar, ainda humilde, mas já brilhante tenente de cavalaria, habituado aos rigores da guerra, habituado a matar de perto, tocando o inimigo:
«Ah, terrível guerra, espantosa mistura de glória e de imundície, de coisas miseráveis e sublimes, se os modernos líderes esclarecidos te conhecessem mais de perto os homens simples dificilmente te voltariam a ver».[1]
É como verdadeiro «moderno líder esclarecido» que João Paulo II assume a meditação sobre a paz, iniciada pelo seu antecessor, e torna a paz no centro de reflexão para a humanidade de boa vontade, no início de cada novo ano cristão.
É sobre esta nobre tarefa que o Capitão-de-Fragata Francisco Piedade Vaz realiza o estudo intitulado João Paulo II. O compromisso pela paz, que consubstancia a investigação, levada a bom porto, conducente à obtenção do Grau de Mestre em Ciências Religiosas pela Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa, publicado pela Editorial da Cáritas Portuguesa.[2]
Formalmente, a obra apresenta um «Siglário»; um «Prefácio», da autoria de Acácio Catarino; uma «Apresentação»; uma «Introdução»; três capítulos: primeiro, «A paz no pensamento social cristão»; segundo, «As raízes da paz»; terceiro, «O compromisso pela paz»; «Conclusão»; «Bibliografia» e, em «Anexo», a Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Esta obra é uma obra sobre a paz, indubitavelmente. A sua finalidade é mesmo ser um instrumento litúrgico da paz, isto é, estar ao seu serviço, mostrando cientificamente como a preocupação teórica, prática e pragmática, pastoral, portanto, com a paz aconteceu no pontificado de João Paulo II.
Esta obra sintetiza de uma forma profunda e elegante o fundamental da doutrina sobre o tema da Paz fruto da reflexão do Papa João Paulo II.
Nela, podemos encontrar linhas de possível leitura da realidade política mundana, sustentadas sobre um realismo apenas passível de ser possuído por parte de quem viveu a experiência da guerra e dela retirou incontornáveis lições de Paz.
Num momento da história da humanidade em que, como nunca na história da conflitualidade humana, nos abeiramos do que pode bem ser a verdadeira Primeira Guerra Mundial, agora, Universal, o pensamento sobre os fundamentos da paz, como pensados por João Paulo II e generosamente postos à nossa disposição por Francisco Vaz, ganha foros de incontornável pertinência e importância.
Com eles talvez já não possamos evitar a mais destruidora das guerras, mas certamente podemos pensar no que poderia ser uma humanidade que se tivesse rendido ao Senhor da Paz, não aos também mortais senhores da guerra.
Junho de 2017
Américo Pereira



[1] Citado pela sua neta, in Winston Churchill pela sua neta Celia Sandys, Lisboa, Aletheia Editores, 2006, p. 27.
[2] Esta dissertação teve como seu orientador principal o Prof. Doutor Jerónimo Trigo e como co-orientador o Prof. Américo Pereira. Lembramos a especial importância da contribuição para a sua publicação do Senhor Engenheiro António Lages Raposo, bem como do Senhor Presidente da Cáritas Portuguesa, Prof. Eugénio Fonseca, não esquecendo todos os demais que tornaram possível e real a construção e publicação da obra.

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