Através dos testemunhos monumentais de
que dispomos e que, em sua mesma variedade multímoda, apresentam
características estruturalmente comuns a toda a humanidade, permitindo, através
deles, que saibamos que estamos perante monumentos de origem propriamente
humana e não com outra origem qualquer, temos conhecimento de que quem tais
monumentos criou se inteligia como fazendo parte de um todo universal, isso a
que chamamos cosmos e que define o campo possível de inteligibilidade e de vida
de e para a humanidade. A este campo reconhecemos como o lugar próprio de
existência do ser humano: o seu «topos», a sua habitação universal, a sua
«oikia» ou «oikos».
O habitar humano geral é um habitar
segundo o «logos» próprio de cada ser humano e de todos os seres humanos. É,
literalmente, uma forma «ecológica» de ser e de viver. A vida humana, desde que
há sinais inequívocos de que há algo como uma «vida humana», é uma vida
ecológica.
«Ecologia», o termo e a noção que
transporta, não surge aqui como uma categoria moralizadora, como uma eventual
«forma correcta de habitar», mas como, simplesmente, a «forma de habitar», pois
não há outra. Não é, pois, uma noção moralizadora, mas uma noção ontológica.
Nos mitos antigos – e em alguns
modernos, os propriamente «ecológicos», em sentido moralizador –, o ser humano
surge sempre, e de novo, como habitante de um mundo totalmente integrado e
totalmente explicado em sua matriz ontológica pelo próprio mito fundador. Não
há separação entre o mundo e o ser humano. Qualquer eventual separação faria
com que imediatamente a possibilidade ontológica humana ficasse ameaçada.
É com o surgimento da atitude
filosófica que surgiu a possibilidade de distanciamento lógico entre o ser
humano e o mundo de que faz parte, que pode passar a ser perspectivado como de
natureza diferente da do ser humano. Se esta possibilidade se realiza,
imediatamente se instaura uma cosmovisão dualista em que o ser humano e o mundo
já não partilham do mesmo ser fundamental, perdendo-se a inteligência activa do
acto ontológico que une ser humano e mundo. O ser humano passa a viver e a
pensar como se houvesse uma solução de continuidade ontológica entre si e o
mundo.
O mundo deixa de ser coisa do mesmo
estofo ontológico que eu, não havendo qualquer relação entre os dois que não
seja uma mera relação de co-existência. Nada impede, então, que, nesta
co-existência, que mais não é do que um paralelismo de existências, que uma
delas domine a outra, pois, não havendo consubstancialidade entre ambas, a
relação não pode ser intrínseca, tem de ser extrínseca.
Ora, sendo assim, há apenas três
possibilidades de relação. A primeira é uma relação pela negativa, isto é, a
relação que nega a relação, ignorando a realidade humana a outra realidade. A
segunda é uma relação em que a realidade humana ama a outra realidade, isto é,
em que opera no sentido do seu bem possível. A terceira é uma relação em que a
realidade humana se apossa da outra realidade, sem cuidado pelo bem próprio
dessa realidade.
São estes os três modos possíveis e
reais – ainda contemporâneos – de relação entre o ser humano e a restante
realidade. Estes mesmos modos podem ser alargados a toda a realidade que
transcende qualquer ser humano considerado individualmente, constituindo o modo
padrão típico de relacionalidade entre o ser humano individual e o restante da
realidade sua coeva.
Ora, toda esta relacionalidade, relação
possível, e toda a relação efectivada nunca dispensam mediação. A ausência de
mediação seria o que tecnicamente se define como magia. E não há magia (salvo
precisamente nos mitos). As mediações são
exactamente constituídas pelo trabalho e pela técnica a ele associada.
Podemos, assim, perceber que toda a
inserção do ser humano no mundo, entendido quer do ponto de vista material quer
do ponto de vista lógico – segundo o «logos» – é sempre fruto do trabalho e da
técnica, depende sempre do trabalho e da técnica.
Assim sendo, a relação do ser humano
com a «ecologia» é muito mais profunda do que comummente se pensa, pois todo o
trabalho humano tem implicação, imediata ou mediata, sobre o todo em que se
situa e de que faz parte. E tal sucede realmente quer o ser humano o perceba
quer não.
Como a relação é necessariamente
recíproca, o que o trabalho humano modifica na realidade envolvente faz com que
essa realidade com que passa a relacionar-se seja diferente. Tal diferença
condiciona de forma diferente tal
relação, modificando a condição de relacionamento com o trabalho possível.
Assim, se, através do trabalho humano,
se eliminar um certo recurso de que tal trabalho, precisamente, necessitava para
ser possível, tal modificação, por si só, impede que tal trabalho possa
continuar a existir. Este exemplo é paradigmático do que pode suceder e sucede,
de facto, na relação entre o trabalho exercido e isso em que se exerce, a
realidade envolvente, quando o trabalho não respeita a possibilidade da
relação.
Podemos, deste modo, perceber que todo
o trabalho exercido pelo ser humano – e aqui «trabalho» significa a parte
poiética da acção humana, que existe sempre – tem repercussão sobre a realidade
envolvente, isso que habitualmente designamos como «ambiente», forma menor de
referirmos a realidade como um todo, pois toda ela é afectada, mesmo que não haja
de tal consciência.
A cultura coincide com o produto total
do trabalho humano, em seu sentido mais lato. Podemos, portanto, compreender
que a cultura é o correlativo substancial humano do que transcende a
humanidade. O trabalho constitui a cultura na relação com o que não é
propriamente humano co-presente à humanidade, desde que há humanidade e apenas
desde que há humanidade. A ecologia é, assim, a relação entre a humanidade em
seu mesmo acto cultural universal e tudo o que não é propriamente humano.
Não é apenas uma ciência. Não é apenas
uma forma de estar com a natureza correctamente. É o único modo de o ser humano
se relacionar activamente com o que transcende a humanidade: o habitar a casa
universal, mas com a possibilidade de a modificar, de a construir, de a melhorar,
de a piorar, de a destruir, sempre na forma da relação.
A relação entre o ser humano como
entidade que é na forma de trabalho e o restante da realidade é, assim, sempre
uma relação dramática, podendo ser uma relação trágica, não apenas porque o ser
humano, através do trabalho, pode aniquilar parte da realidade envolvente, mas
também porque a realidade, negativamente modificada pelo trabalho humano, pode
aniquilar os seres humanos, quer em sentido particular de aniquilar algum ou
alguns, mas não todos, quer no sentido de poder aniquilar todos.
Sendo assim, o modo de ser do trabalho
humano tem sobre si uma responsabilidade verdadeiramente cósmica, cosmológica e
cosmogeradora. O seu não cumprimento implica imediatamente a diminuição da
riqueza cósmica e do que tal riqueza permite em termos de futura relação: no
limite, o trabalho humano pode ser o factor da destruição da própria
humanidade. Lembre-se do terror em que se viveu nos anos cinquenta e sessenta
do século XX em virtude da ameaça de destruição nuclear. Tal destruição seria
fruto do labor humano, não de uma qualquer divindade ou realidade natural.
Por outro lado, é através do trabalho
humano que é possível uma relação ecológica que respeite o melhor possível a
possibilidade de continuidade de relação entre os seres humanos e a restante
realidade. Como trabalho possível, está, como simbolicamente se costuma dizer,
«nas nossas mãos».
Setembro de 2017
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