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sexta-feira, 13 de outubro de 2017

Pensar a pobreza hoje à luz de São Tomás de Aquino

Pensar a pobreza é tarefa para uma vida e que, além disso, cabe no âmbito de várias ciências. Sendo a nossa área de trabalho e de estudo a da Filosofia Medieval, propomos hoje revisitar as considerações de São Tomás de Aquino acerca da pobreza. Ainda que tenha falecido há cerca de sete séculos e meio, muitas das suas reflexões são transversais, fazem sentido no seu e no nosso tempo; não é por acaso que é o Doutor Comum (no sentido de universal) da Igreja. Consideramos que, em particular, as suas observações sobre a pobreza se revestem de alguma atualidade merecendo, por isso, ser revisitadas.
 Dividimo-las em três partes – a pobreza perspetivada por quem: 1) a escolhe; 2) não vive nela; 3) lhe está submetido.
1. A pobreza escolhida
Um dos capítulos de Saint Thomas Aquinas, obra redigida por Chesterton para divulgação da vida e do pensamento do Angélico, intitula-se «O Abade fugitivo» («The runaway Abbot»), precisamente porque o jovem Tomás renunciou aos planos traçados para um dia substituir o seu tio Sinibaldo, Abade de Montecassino. Tomás escolheu ser frade mendicante para melhor seguir o exemplo de Cristo. Viver de esmolas é viver com Cristo porque também Cristo mendigou, sendo este um exercício eficaz contra a soberba (cf. Suma de Teologia II-II q187 aa4-5). O mestre dominicano defende a legitimidade de o religioso viver de donativos (na condição de se dedicar às atividades próprias da vida religiosa). Assim como Cristo pregou vivendo na pobreza, também os pregadores da palavra de Deus devem estar livres dos cuidados seculares, para que se possam entregar totalmente à pregação (cf. Suma de Teologia III q40 a3).
A radicalidade desta opção de vida fundamenta-se em alicerces sólidos. A escolha da simplicidade, da frugalidade, da sobriedade não resulta de uma autotortura através da privação, mas da consciência de que os bem temporais são incompletos e efémeros; incapazes, por isso, de saciar o ser humano. Esta clarividência não é partilhada por todos restringindo-se a opção pela pobreza evangélica, por isso, a uma minoria.
2. A pobreza, do ponto vista de quem não lhe está (pelo menos no presente) sujeito
Os evangelhos relatam-nos que Cristo não apenas viveu de esmolas como também conviveu, comeu, bebeu, frequentou festas, a fim, diz São Tomás, de nos mostrar que a vida reta não requer necessariamente a austeridade e abstinência. Com efeito, se João Batista escolheu uma vida austera, alimentando-se de gafanhotos e mel silvestre (cf. Mateus 3,4), o mesmo não o fez Cristo, que comeu e bebeu com os publicanos (cf. Suma de Teologia III q 40 ob1, ad1). Cristo quis ser exemplo para todos – e a pobreza evangélica não tem que ser escolhida por todos.
O Aquinate defende, com Aristóteles, que a virtude se encontra no justo meio entre os extremos. Afirma, pois, que a abundância de riquezas e a mendicidade são de evitar porque proporcionam ocasiões para pecar (por exemplo: a primeira facilita o orgulho; a segunda favorece o surgimento do roubo e da mentira). Elas não ditam que a pessoa que as enfrenta cometa o pecado (em última instância, o ser humano é quem escolhe), mas criam as condições que propiciam a sua ocorrência. Se todos tiverem o necessário para o seu sustento, a vida na sociedade será mais sã e decorrerá de modo mais pacífico (cf. Suma de Teologia II-II q66 a2 co). A existência da propriedade privada é benéfica na medida em que otimiza a gestão e a ordem sociais, evitando a incúria e a confusão. Constata Tomás, que as pessoas põem mais cuidado em preservar aquilo que lhes foi confiado individualmente do que aquilo que foi entregue ao cuidado de muitos (cf. Suma de Teologia II-II q66 a2 co).
São Tomás aconselha a pessoa que está numa situação social em que não enfrenta a penúria a, no entanto, pautar-se pela sensatez e satisfazer-se com pouco (cf. Suma de Teologia II-II q66 a1 co). A liberalidade, virtude que pode ser praticada por quem vive na abundância mas também por quem passa dificuldades (com efeito, a questão não é o quanto pode dar mas o facto de dar), encontra-se entre dois extremos; a avareza e a prodigalidade; e é liberal aquele que atende aos outros sem se negligenciar a si ou à sua família (cf. Suma de Teologia II-II q66 a1 co, ad1, ad2).
3. A pobreza que oprime
Um dos pontos interessantes da reflexão tomista sobre a pobreza é o facto de a perspetivar não apenas do lado de quem a escolhe e do lado de quem a socorre mas também do lado de quem lhe está sujeito, sem opção. A sua posição a este respeito decorre da condição do ser humano como guardião, mas não verdadeiro senhor da Criação (cf. Suma de Teologia II-II q66 a1 co). De acordo com o direito natural, tudo é de todos; é apenas para a garantia da ordem que a razão humana estabelece, por convenção, a propriedade privada. A propriedade privada resulta, portanto, do direito positivo, não do direito natural (cf. Suma de Teologia II-II q66 a2 ad1). Mas o que legitima a justiça ou injustiça do próprio direito positivo é a sua maior ou menor conformidade com o direito natural. Porque nada é verdadeiramente nosso, o Doutor Comum afirma que os bens devem ser partilhados com os outros que sofrem com alguma necessidade (cf. Suma de Teologia II-II q66 a2 co) – porque a supressão desta necessidade é exigida pelo direito natural.
São Tomás recusa subjugar o valor da dignidade humana ao valor da propriedade privada. Defende, por isso, que, em caso de necessidade, aquele que está sujeito a privações de tal ordem que ameaçam a sua vida tem pleno direito de subtrair, a quem tem mais do que o necessário, o que for preciso para garantir a sua sobrevivência. Nesta perspetiva, aquele que vive na pobreza não tem de se resignar à passividade – porque se a necessidade for tamanha que uma pessoa não se possa salvar a si mesma ou não possa ser salva por outrem de outro modo, é legítimo que a pessoa, ou aquele que a pretende salvar, se apodere do bem alheio – manifesta ou ocultamente (cf. Suma de Teologia II-II q66 a7 co, ad3).
Pode perguntar-se: apropriando-se do bem alheio, estará a furtar? Afinal, o furto atenta contra a caridade, contra o amor ao próximo, e a sua generalização implicaria o fim da sociedade (cf. Suma de Teologia II-II q66 a6 co). Defende o Angélico que aquele que rouba por necessidade não incorre em pecado; antes reivindica para si a parte que lhe cabe legitimamente pelo direito natural. Em caso de necessidade, explica, não há propriamente propriedade privada: «Na necessidade todas as coisas são comuns. E, assim, não parece haver pecado se alguém toma uma coisa de outrem, porque a necessidade fez dela um bem comum para ele» (cf. Suma de Teologia II-II q66 a7 sc).
A gestão dos bens dentro de uma sociedade deve ser feita de tal modo que não falte o essencial a um dos seus membros, porque tal constituiria um atentado contra o direito natural, que estabelece que todos os bens são de todos. Todavia, em todas as sociedades os desequilíbrios acontecem (por diversas causas: sociais, naturais, etc) e as situações de necessidade irrompem decorrendo daqui a obrigação moral de ajudar o próximo, corrigindo esse desequilíbrio. Se alguém possui mais bens do que os necessários para o seu sustento, vivendo na abundância, tem por obrigação auxiliar quem está na penúria, já que os bens que aparentemente possui não são verdadeiramente seus (cf. Suma de Teologia II-II q66 a7 co).
Em suma: se a pobreza escolhida é meritória, o mesmo não se pode dizer da pobreza que tiraniza as pessoas, delimitando e encurtando os seus horizontes e as suas opções, amesquinhando a dignidade humana.
Em momentos históricos como o nosso, em que se discute a nível europeu e mundial o que fazer com números avassaladores de refugiados migrantes e em que, a nível nacional, os mínimos salariais estão longe de garantir uma vida confortável às famílias portuguesas, a reflexão com mais de sete séculos feita pelo Doutor Comum tem, pelo menos, o mérito de nos desinstalar e desafiar.

Inês Bolinhas

Fevereiro 2017

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