Os termos «política» e «político» têm a
sua origem no termo helénico «polis» (πόλις), que significa, numa tradução
demasiado rápida, «cidade». Porquê esta classificação, nossa, de «demasiado
rápida»? Porque o termo «cidade», pela equivocidade que assumiu, já não
significa coisa alguma, independentemente de uma concretização nocional ou
conceptual.
Não perceberemos o que está de
fundamental em jogo quando nos referimos a «política», que é o termo mais geral
e, assim, o que aqui tem maior relevo epistemológico, se não percebermos o que
o termo «polis» significava para quem o criou. Que é isso da «polis»?
Antes de mais, e ontologicamente, quer
dizer, segundo o seu ser próprio e irredutível, a «polis» é uma relação. A «polis» é sempre do
âmbito do relacional: sem relação, não há «polis». Isto significa que a «polis»
nunca é do âmbito do irrelacionável, algo como uma substância isolada. A haver
uma substância da «polis», tem de ser do âmbito da relação. Tal tem consequências,
verdadeiramente «políticas», fundamentais. Note-se que grande parte do debate
que hoje acontece a nível do que vulgarmente se chama «político» ocorre ao
nível da questão das relações.
Mas a «polis» é uma relação entre quê?
É uma relação entre seres humanos. Apenas entre seres humanos: na nossa
experiência – e não possuímos ou temos acesso a qualquer outra experiência que
não esta, pessoal e intransmissível –, não há algo como «poleis», por exemplo,
de anjos ou de abelhas, pese embora a constante torrente de asneiras que a
respeito de tais designações vai acontecendo, criando uma equivocidade teórica
com efeitos desastrosos a nível epistemológico, que se repercutem nos níveis
antropológico, ético e político.
A «polis» e, consequentemente, tudo o
que a ela diga respeito é sempre e só um assunto humano. Mas é o assunto humano
por excelência. Porquê?
Porque a «polis» como relação é logicamente anterior ao ser humano como coisa
individual. Nenhum indivíduo humano é ou pode ser logicamente anterior à «polis»
porque nenhum ser humano teve a sua origem num qualquer acto espontâneo
auto-produtor, isto é, precisou sempre de ser produzido por meio de uma relação
entre outros seres humanos, os seus, no mínimo, progenitores biológicos; no
máximo, pais, no verdadeiro sentido antropológico, ético e político do termo.
Situamo-nos perante uma questão lógica
sem resolução: por um lado, a «polis» é a relação entre pelo menos dois seres
humanos, pelo que, necessariamente, tem de haver pelo menos dois indivíduos
humanos, previamente não relacionados, que, ao relacionarem-se, criam,
literalmente criam, isso que é a «polis». Indiscutível. Só que estes dois seres
humanos, para poderem ser os dois primeiros criadores de uma cidade, tiveram de
surgir de um nada humano, pois, caso contrário, teriam surgido de uma relação,
o que originaria uma remissão ao infinito. Percebemos, agora, a profundidade
ontológica e antropológica da «política», como suporte lógico da possibilidade
da humanidade e de humanidade. É
sobre esta base lógica, onto-lógica, que o que isso que é a humanidade enquanto
histórica assenta.
Do
ponto de vista lógico, o surgimento da «polis» nunca terá explicação possível. Não admira, assim, que os velhos
mitos que procuraram explicar a existência da realidade política sejam mitos
metamórficos[1]
ou mitos criacionistas, em que a realidade política é dada precisamente como um
dado. É o caso do mito adâmico
judaico-cristão, em que a «polis» é dada por criação: quando de si próprios se
apercebem, já Adão e Eva estão em relação, em acto político. Não criam a
«polis»; pelo contrário, no caso vertente, destroem-na.
Originalmente, então, a criação da
«polis» implica a relação entre dois seres humanos não politicamente
produzidos, não em termos estritamente humanos. Esta evidência aplica-se mesmo
ao necessário substrato lógico das pesquisas antropogónicas e politogónicas
levadas a cabo pelas escolas de tipo páleo-arqueo-antropológico: quando
descobrem algo de incontrovertivelmente humano – e não, não é uma Lucy qualquer
–, descobrem sempre já a humanidade pronta: é o que se nos depara em Altamira,
em Lascaux, no Vale do Coa e em tantos outros lugares já inquestionavelmente
humanizados.
Catar pulgas a entes formalmente
semelhantes não constitui «polis», pois não é um acto de um ser humano, isto é,
a menos que seja um ser humano a fazê-lo. Não há «cidades de abelhas» senão na
mente de cientistas intelectualmente preguiçosos, que resolvem mal, com más
metáforas projectivas, assuntos que deveriam ser bem resolvidos atribuindo o
sentido próprio a cada acto. Ora, os seres humanos só podem perceber os actos
de seres humanos e, ainda assim, com toda a dificuldade que a distância
necessária para que haja relação política implica.
Que distância é esta? Não é evidentemente
uma distância física; psicológica, apenas; afectiva, apenas; imagética, apenas; volitiva,
apenas. Trata-se de uma distância segundo
o ser: para que não nos confundamos em termos dos nossos seres, somos
ontologicamente separados; ontologicamente «incomunicáveis» é a designação
correcta.
A nossa comunicação, toda ela, é do
âmbito do político, pois dá-se, e dá-se apenas, ao nível da relação entre seres
humanos, como seres separados ontologicamente que somos.
Então, o que é que se comunica?
«Protocolos», o que se comunica são protocolos. Linguagem, se se quiser; mas
linguagem que tem de obedecer a protocolos partilháveis pelos vários seres
humanos em relação. É esta a razão pela qual não podemos comunicar senão
ilusoriamente, na forma do sentido, com outros seres, a menos que estes seres
sejam capazes de usar os mesmos protocolos que nós: teremos de humanizar o equivalente,
na abelha, ao sentido, antes de realmente comunicarmos com ela; ou, então,
«abelhizar» o nosso sentido.
Percebe-se, assim, a razão profunda por
que, por exemplo, é miticamente possível comunicar com anjos: é que estes são
autênticos protocolos de comunicação humana, mas sem carne, isto é, são
relações de sentido que transcendem a condição histórica dos seres humanos: não
têm, por exemplo, de aprender línguas; comunicam ou comunicam-se directamente como sentido. Tal é impossível no nosso
âmbito.
Os seres humanos são seres históricos,
com tudo o que tal implica em termos de mediações, isto é, de impossibilidade
de acção, qualquer seja, sem o uso de meios. Não há magia no mundo – não confundir com maravilha, que é comum (o mundo é comummente maravilhoso como
mediação).
Sermos entes de mediações significa que
somos entes necessariamente éticos, isto é, que têm de se movimentar autonomamente
para que possam, em absoluto, ser.
É neste âmbito mediacional que se
enraíza a possibilidade da «polis»: para que a relação, há pouco explorada,
entre pelo menos dois seres humanos aconteça é necessário que pelo menos um
deles decida – isto é, empreenda, aja, no sentido de comunicar com o outro.
Este é o cerne da ética como lugar motor próprio de cada ser humano e, assim
também, da «polis», na forma do acto político – de todos os actos políticos – acto
irredutivelmente próprio de se
aproximar do outro para com ele comunicar.
Nem sequer estamos a qualificar o acto.
Pode ser um acto qualquer de aproximação, com uma finalidade qualquer. Como é
evidente, o futuro desta relação incoativa depende da finalidade, mas não é
isso que é o fundamental, antes, o primeiríssimo passo de aproximação. Não é
sequer preciso realçar a importância que este tema tem na situação política
actual do mundo, como, aliás, sempre teve.
A «polis» nasce, assim, do acto em que
a interioridade ética de um qualquer sujeito humano é transcendida no sentido
do estabelecimento de relação de comunicação com um outro. Mesmo que o outro
recuse prosseguir a relação, já não pode escapar a ter estado em relação. A
«polis» teve a extrema brevidade de dois actos, o da aproximação e o da recusa,
mas, em absoluto, aconteceu.
Este exemplo teórico extremo permite
perceber a força antropológica da relação que cria a «polis», logo, a força
antropológica da própria «polis», da «coisa política» em acto. Compreende-se,
agora, muito melhor, por que razão não pode haver humanidade sem «polis», sem
«política». Também se começa a compreender muito melhor a razão pela qual a
política pode ser a actividade mais nobre da humanidade, embora esta última
habitualmente teime em que não o seja.
Todo o acto político tem como seu
criador antropológico um acto ético, como tal, irredutível. Percebe-se, também,
que uma sociedade – não é bem uma «polis» – de escravos, para que possa ser
criada, depende da redução ética de esses a quem se quer escravizar, receita
vetusta de todos os candidatos a tiranos.
Para que não seja o triste exemplo da
recusa de relação esse que define a cidade – já está na altura de lhe chamarmos
assim, porque, nesta fase da nossa reflexão, já quer dizer algo de muito
diferente da má tradição invocada inicialmente –, tem de haver relação como acto de comunicação
possivelmente perene entre dois sujeitos éticos, duas pessoas. Duas
entidades com capacidade permanente de
escolha no sentido da manutenção da relação.
Ora, é aqui, neste lugar lógico da relação entre duas entidades propriamente éticas,
que surge o elemento «acto de fé»:
não é possível haver comunicação entre duas entidades éticas, quaisquer, sem
que haja reciprocidade de actos de fé. É evidente que esta fé não é a da ordem do teologal, mas é, no
entanto, a mais básica, sem a qual não pode haver a teologal, de que a outra é
a matriz antropológica.
Trata-se da fundamental confiança. Nenhum acto é humanamente
possível sem que seja literalmente in-formado
e logicamente precedido por um acto
de confiança: ninguém age de modo algum, se não tiver confiança de que esse
acto em si mesmo – o que implica as suas consequências humanamente pensáveis – é
confiável: como dar o possível próximo
passo, se tal passo me pode precipitar, em última análise, no nada?
Esta é a matriz lógica de toda a
possibilidade de acção propriamente humana: sem tal, não há um acto humano, mas
algo de mecânico ou meramente biológico, isto é, do ponto de vista
antropológico, ético e político, um
não-acto.
Então, na raiz mais profunda da possibilidade e da realidade da «polis» está
um acto de fé.
A fé – mesmo a teologal, que diz
respeito à possibilidade de estabelecimento de «polis» com Deus – assume uma dupla dimensão política: primeiro, está
na base de todo o acto ético em sua transcensão criadora da política, através
da efectivação da relação; segundo, como acto de relação, é, por essência, um
acto político.
O que temos de nos perguntar, neste
nosso momento político global que vamos vivendo, é em que estado está o acto de
fé de cada instante de cada pessoa que cria isto que é a «polis» como relação
entre seres humanos, em forma global, mesmo já universal.
De facto, quando se diz que as pessoas
perderam «a confiança nos políticos», afirma-se algo muito mais profundo do que
apenas uma perda de confiança psicológica ou política, em sentido comum:
vivemos tempos em que sistematicamente o acto de fé fundamental em que assenta
a coisa política se vai enfraquecendo. É mesmo a chamada “sociedade” que se
está a desintegrar por falta de fé.
E é realmente «falta de fé nos “políticos”»,
só que os “políticos” não são um «eles», mais ou menos anónimo, somos todos nós, estes que deixámos de
acreditar na possibilidade de comunicar humanamente com o outro, isto é, que
deixámos de acreditar na possibilidade da cidade
como acto de fé dos seres humanos nos seres humanos, de que tudo o mais não
é, senão, apenas, mais ou menos superficial ancilaridade.
Perdemos a fé uns nos outros. E tal
sucedeu porque a fé não é a condição lógica última
para a «polis», mas é precedida por uma outra condição, mais funda, que é o
necessário acto de amor como suporte
para o acto ético de aproximação ao outro. E é este sentido do bem do outro
como motor da minha relação para com ele que, estando moribundo, está a matar a
possibilidade da fé: se não amo o outro,
como acreditar na possibilidade da relação com ele?
Terminamos com uma simples e claríssima
citação do Papa Francisco, do § 58 da sua Laudato
Si’: «Estas acções não resolvem os problemas globais, mas confirmam que o
ser humano ainda é capaz de intervir de forma positiva. Como foi criado para
amar, no meio dos seus limites germinam inevitavelmente gestos de generosidade,
solidariedade e desvelo.».[2]
Américo Pereira
Maio de 2017
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