Nas capas dos cadernos que, há muito
tempo, recebi quando iniciei a Escola Preparatória, encontrava-se inscrita a
seguinte máxima: «a violência é o argumento do incompetente».
Várias dezenas de anos de estudo da
guerra demonstram-me a radical verdade de tal inscrição.
A violência é sempre manifestação de incompetência, de uma
incompetência que promana de algo muito profundo na ontologia humana, que é
propriamente a negação do que há de activo na ontologia humana e que constitui,
literalmente, a impotência ética, a
impotência da acção no sentido do bem.
Se fosse possível a magia de tornar a
prosopopaica humanidade em real pessoa, poder-se-ia dizer que esta mesma
humanidade sempre soube de tal, ou, pelo menos, sempre desconfiou de tal. Esta
noção de impotência ética – que é onto-antropológica, pois encontra-se na
própria matriz activa do ser humano, na original fonte de todo o seu ser como
acto próprio – é isso que sempre surge nos mitos cosmogónicos e cosmológicos,
quando, precisamente, a cosmogonia se revela impotente para o bem, quando a
cosmologia se torna numa qualquer variante de uma «caologia» de uma
«cacologia»: quando o mal surge. E surge sempre.
É assim em todos os mitos a que acedi.
O mal é sempre da ordem da impotência. Quando bem disfarçado, parece ser da
ordem da potência, mas, olhado mais atentamente, trata-se sempre de uma
potência relativamente menor, logo, na menorização que é, de uma impotência.
É a impotência do Gilgamesh, que pensa
que quer a vida eterna, mas que a não agarra quando a tem na mão, literalmente.
A impotência do Satã que, esperto, questiona, junto de Deus, a bondade de Job;
a impotência da mulher e dos falsos amigos de Job, bons para acefalamente
criticar o que não compreendem, maus para amar o que necessita de amor. A
impotência de Aquiles perante o desejo de vilipendiar o seu contra-par, Heitor,
vileza que recebe como prémio a morte entrada pelo único poro possível, com a
divina pontaria que demonstra o que é a verdadeira potência.
Mas é também a impotência de homens e
deuses perante a grandeza humana de Édipo, pelas Erínias guardado no divino
santuário da ordem do mundo. Humana potência indefectível do errante e sofredor
Édipo, cujos pés padecem por ancestrais impotências de deuses apenas potentes quando
metamorfoseados em divinas bestas violadoras de meninas.
A impotência de Creonte perante a
avassaladora potência de Antígona, fiel seguidora dos pés de seu pai, sem medo
de homens, amando a ordem e, nela e com ela, os irmãos, que, na violência da
desordem, um a outro se mataram.
Por fim, a impotência do diabo perante
o senhorio da vontade de Jesus, manifestando, na oposição do «não» à tentação
de poder dos impotentes, o modelo do que será a vitória sobre a impotência das
impotências que é a morte.
E não nos enganemos: esta morte sobre
que Cristo triunfa não é a «irmã Morte», de Francisco de Assis, mas a morte
como aniquilação. Esta morte não tem irmãos ou relação qualquer. É o absoluto
da impotência e chama-se «nada».
Potência absoluta, impotência absoluta:
Deus e o nada.
Voltemos à máxima inscrita no velho
caderno. Deus, que é exactamente omnipotente – percebe-se que como bem, para o bem – é, assim, esse
que não usa violência. A violência é a marca do impotente, do incompetente. É
porque é incapaz de criar que o impotente é violento: no ilusório modo perverso
de o acto do violento ser, nada parece ser mais próximo do criar do que o destruir;
ambos parecem demonstrar capacidade infinita de poder. É o que a imagem do
contraste entre o «sete» divino da perfeição e o «seis» diabólico da «quase-perfeição»,
da paródia da perfeição, simboliza.
No entanto, de facto, toda a criação,
porque toda ela introduz um absoluto de novidade no ser – irredutível a tudo o
que antecedia –, é sempre manifestação de infinito poder, tal é a «energia», o
acto necessário para «arrancar» o novo ao “nada” de si próprio que “substitui”
(sim, a expressão é mesmo difícil, pois estamos no limiar do pensável).
Mas a energia, o acto necessário para
destruir seja o que for – dado que não é possível aniquilá-lo, «nadificá-lo» –
é sempre finita, logo, infinitamente menor.
Se a criação é própria dos «poietas»,
dos poetas do ser – como análogos de Deus, poeta infinito –, a violência é
própria das bestas, dessas em que se tornam os seres humanos quando, em vez de
introduzir bem no real, neste destroem bem ou impedem bem de surgir. É esta a
definição do pecado, assim sinónimo de violência. É isto que somos, que eu sou quando peco: violento, impotente,
incompetente.
Quanto aos que defendem algo como a
«violência criadora» ou a «destruição criadora», conviria pensar no que é que
há de criador em destruir um bem? Não está em causa o que pensam que é um bem, o que é subjectivo, mas algo que é
ontologicamente um bem, como, por exemplo, o ser dos próprios. Ou será que,
como quando as incómodas excepções ameaçam a validade dos argumentos, a eles,
aos próprios, não se aplica o “conceito”?
É violência todo o acto que atenta
contra um bem concreto ou possível de alguém (por extensão, de algo). Deste
ponto de vista – que nos ajuda a perceber melhor e de forma realista o que em
Francisco de Assis parece ser um traço puramente afectivo –, toda a nossa
existência se funda em actos de violência, de que, aliás, não nos podemos, em
absoluto, alienar. Biologicamente, vivemos da violência que necessariamente
exercemos, como seres heterotróficos que somos, sobre outros seres.
A resposta radical extrema residiria na
negação desta condição, pela nossa mesma morte. Mas esta não é também, nestas
condições, uma violência? Se não é, que estamos ainda a fazer vivos?
Na realidade, estamos condicionados a
viver – é esta a condição mundana, não há outra – entre a violência da negação
do nosso próprio ser e a violência que temos de exercer para podermos continuar
a ser. É esta condição que a expulsão do paraíso significa. No paraíso, não há
violência, pois nada é destruído. A condição extra-paradisíaca significa que a
vida sempre se mantém sobre o sacrifício da vida.
Então, estamos condenados à violência?
De um ponto de vista biológico parece que sim. E, se fossemos apenas seres
biológicos, toda a nossa vida seria esta dinâmica de violência. Aparentemente.
Mas, na pura biologia, inconsciente de se
ser o que se é, há violência?
Precisamente, não. Na ratio própria da natureza não humana, o
que se encontra sempre é uma dinâmica e uma cinética de força, de forças, em
que o que tem de ocorrer ocorre, sem que se possa falar de algo como
«violência».
A violência não pode ser sinónimo de
força ou, então, tudo o que é violência em termos humanos perde o seu sentido
próprio, diluído na semelhança com o uso da força na natureza não humana.
Nada melhor para desculpabilizar um SS
que assassinou ou ajudou a assassinar milhares de crianças em Treblinka ou em
Auschwitz, por exemplo, do que comparar a força dos seus actos com a força dos
actos de um macho de leão que mata instintivamente os filhotes da leoa que
naturalmente se movimenta para possuir. Tão violento é o SS quanto o leão?
Então, o SS tem o mesmo mérito ou demérito que o leão.
Não foi um mundo intelectualmente
alicerçado sobre este tipo de relativização o mundo, este mundo que
contemporaneamente se construiu e de que agora parece haver quem finalmente se
dá conta de ser como é?
Não se tem vindo a optar globalmente –
não é o mesmo que «universalmente», o que seria manifestamente falso – pela
facilidade da humana violência, a todos os níveis, negligenciando a trabalhosa
e difícil misericórdia? Que é isso de um mundo de competitividade sem violência
e necessárias vítimas? Que é isso de um mundo de valor construído não sobre a
realidade de bens económicos – temos ironicamente de repetir – «reais», mas
sobre a irrealidade de outros valores, por exemplo, fazendo dinheiro a partir
de dinheiro, isto é, insuflando vazios símbolos, que é o que o dinheiro é?
Como posso passar o tempo todo – o acto
todo – a competir, pensando que o que chega em segundo lugar é o «primeiro dos
últimos», sem com isso produzir violência? Como viver na crista da onda
civilizacional às custas do trabalho escravo de outros sem com isto produzir
violência?
Por fim, como resolver esta situação
que se criou sem ser através de um aumento – aqui, sim, como sempre na guerra –
exponencial de violência, situação, aliás, para a qual nos encaminhamos a
loucos passos largos e de corrida como, muito bem, o Papa Francisco tem
afirmado, quando diz que já se está a viver a Terceira Guerra Mundial?
Numa divina ironia, a única possível
boa saída para a inércia de violência em que nos encontramos mergulhados é a
misericórdia, essa mesmo que o Papa Francisco quis que fosse meditada.
Francisco tem razão: ou interiorizamos
rapidamente a dinâmica e a cinética da misericórdia ou iremos conhecer o
verdadeiro poder dos impotentes, dos incapazes de misericórdia (o que Francisco
nitidamente não é).
Américo Pereira
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