CORO

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sexta-feira, 13 de outubro de 2017

Fácil violência, difícil misericórdia

Nas capas dos cadernos que, há muito tempo, recebi quando iniciei a Escola Preparatória, encontrava-se inscrita a seguinte máxima: «a violência é o argumento do incompetente».
Várias dezenas de anos de estudo da guerra demonstram-me a radical verdade de tal inscrição.
 A violência é sempre manifestação de incompetência, de uma incompetência que promana de algo muito profundo na ontologia humana, que é propriamente a negação do que há de activo na ontologia humana e que constitui, literalmente, a impotência ética, a impotência da acção no sentido do bem.
Se fosse possível a magia de tornar a prosopopaica humanidade em real pessoa, poder-se-ia dizer que esta mesma humanidade sempre soube de tal, ou, pelo menos, sempre desconfiou de tal. Esta noção de impotência ética – que é onto-antropológica, pois encontra-se na própria matriz activa do ser humano, na original fonte de todo o seu ser como acto próprio – é isso que sempre surge nos mitos cosmogónicos e cosmológicos, quando, precisamente, a cosmogonia se revela impotente para o bem, quando a cosmologia se torna numa qualquer variante de uma «caologia» de uma «cacologia»: quando o mal surge. E surge sempre.
É assim em todos os mitos a que acedi. O mal é sempre da ordem da impotência. Quando bem disfarçado, parece ser da ordem da potência, mas, olhado mais atentamente, trata-se sempre de uma potência relativamente menor, logo, na menorização que é, de uma impotência.
É a impotência do Gilgamesh, que pensa que quer a vida eterna, mas que a não agarra quando a tem na mão, literalmente. A impotência do Satã que, esperto, questiona, junto de Deus, a bondade de Job; a impotência da mulher e dos falsos amigos de Job, bons para acefalamente criticar o que não compreendem, maus para amar o que necessita de amor. A impotência de Aquiles perante o desejo de vilipendiar o seu contra-par, Heitor, vileza que recebe como prémio a morte entrada pelo único poro possível, com a divina pontaria que demonstra o que é a verdadeira potência.
Mas é também a impotência de homens e deuses perante a grandeza humana de Édipo, pelas Erínias guardado no divino santuário da ordem do mundo. Humana potência indefectível do errante e sofredor Édipo, cujos pés padecem por ancestrais impotências de deuses apenas potentes quando metamorfoseados em divinas bestas violadoras de meninas.
A impotência de Creonte perante a avassaladora potência de Antígona, fiel seguidora dos pés de seu pai, sem medo de homens, amando a ordem e, nela e com ela, os irmãos, que, na violência da desordem, um a outro se mataram.
Por fim, a impotência do diabo perante o senhorio da vontade de Jesus, manifestando, na oposição do «não» à tentação de poder dos impotentes, o modelo do que será a vitória sobre a impotência das impotências que é a morte.
E não nos enganemos: esta morte sobre que Cristo triunfa não é a «irmã Morte», de Francisco de Assis, mas a morte como aniquilação. Esta morte não tem irmãos ou relação qualquer. É o absoluto da impotência e chama-se «nada».
Potência absoluta, impotência absoluta: Deus e o nada.
Voltemos à máxima inscrita no velho caderno. Deus, que é exactamente omnipotente – percebe-se que como bem, para o bem – é, assim, esse que não usa violência. A violência é a marca do impotente, do incompetente. É porque é incapaz de criar que o impotente é violento: no ilusório modo perverso de o acto do violento ser, nada parece ser mais próximo do criar do que o destruir; ambos parecem demonstrar capacidade infinita de poder. É o que a imagem do contraste entre o «sete» divino da perfeição e o «seis» diabólico da «quase-perfeição», da paródia da perfeição, simboliza.
No entanto, de facto, toda a criação, porque toda ela introduz um absoluto de novidade no ser – irredutível a tudo o que antecedia –, é sempre manifestação de infinito poder, tal é a «energia», o acto necessário para «arrancar» o novo ao “nada” de si próprio que “substitui” (sim, a expressão é mesmo difícil, pois estamos no limiar do pensável).
Mas a energia, o acto necessário para destruir seja o que for – dado que não é possível aniquilá-lo, «nadificá-lo» – é sempre finita, logo, infinitamente menor.
Se a criação é própria dos «poietas», dos poetas do ser – como análogos de Deus, poeta infinito –, a violência é própria das bestas, dessas em que se tornam os seres humanos quando, em vez de introduzir bem no real, neste destroem bem ou impedem bem de surgir. É esta a definição do pecado, assim sinónimo de violência. É isto que somos, que eu sou quando peco: violento, impotente, incompetente.
Quanto aos que defendem algo como a «violência criadora» ou a «destruição criadora», conviria pensar no que é que há de criador em destruir um bem? Não está em causa o que pensam que é um bem, o que é subjectivo, mas algo que é ontologicamente um bem, como, por exemplo, o ser dos próprios. Ou será que, como quando as incómodas excepções ameaçam a validade dos argumentos, a eles, aos próprios, não se aplica o “conceito”?
É violência todo o acto que atenta contra um bem concreto ou possível de alguém (por extensão, de algo). Deste ponto de vista – que nos ajuda a perceber melhor e de forma realista o que em Francisco de Assis parece ser um traço puramente afectivo –, toda a nossa existência se funda em actos de violência, de que, aliás, não nos podemos, em absoluto, alienar. Biologicamente, vivemos da violência que necessariamente exercemos, como seres heterotróficos que somos, sobre outros seres.
A resposta radical extrema residiria na negação desta condição, pela nossa mesma morte. Mas esta não é também, nestas condições, uma violência? Se não é, que estamos ainda a fazer vivos?
Na realidade, estamos condicionados a viver – é esta a condição mundana, não há outra – entre a violência da negação do nosso próprio ser e a violência que temos de exercer para podermos continuar a ser. É esta condição que a expulsão do paraíso significa. No paraíso, não há violência, pois nada é destruído. A condição extra-paradisíaca significa que a vida sempre se mantém sobre o sacrifício da vida.
Então, estamos condenados à violência? De um ponto de vista biológico parece que sim. E, se fossemos apenas seres biológicos, toda a nossa vida seria esta dinâmica de violência. Aparentemente.
Mas, na pura biologia, inconsciente de se ser o que se é, há violência?
Precisamente, não. Na ratio própria da natureza não humana, o que se encontra sempre é uma dinâmica e uma cinética de força, de forças, em que o que tem de ocorrer ocorre, sem que se possa falar de algo como «violência».
A violência não pode ser sinónimo de força ou, então, tudo o que é violência em termos humanos perde o seu sentido próprio, diluído na semelhança com o uso da força na natureza não humana.
Nada melhor para desculpabilizar um SS que assassinou ou ajudou a assassinar milhares de crianças em Treblinka ou em Auschwitz, por exemplo, do que comparar a força dos seus actos com a força dos actos de um macho de leão que mata instintivamente os filhotes da leoa que naturalmente se movimenta para possuir. Tão violento é o SS quanto o leão? Então, o SS tem o mesmo mérito ou demérito que o leão.
Não foi um mundo intelectualmente alicerçado sobre este tipo de relativização o mundo, este mundo que contemporaneamente se construiu e de que agora parece haver quem finalmente se dá conta de ser como é?
Não se tem vindo a optar globalmente – não é o mesmo que «universalmente», o que seria manifestamente falso – pela facilidade da humana violência, a todos os níveis, negligenciando a trabalhosa e difícil misericórdia? Que é isso de um mundo de competitividade sem violência e necessárias vítimas? Que é isso de um mundo de valor construído não sobre a realidade de bens económicos – temos ironicamente de repetir – «reais», mas sobre a irrealidade de outros valores, por exemplo, fazendo dinheiro a partir de dinheiro, isto é, insuflando vazios símbolos, que é o que o dinheiro é?
Como posso passar o tempo todo – o acto todo – a competir, pensando que o que chega em segundo lugar é o «primeiro dos últimos», sem com isso produzir violência? Como viver na crista da onda civilizacional às custas do trabalho escravo de outros sem com isto produzir violência?
Por fim, como resolver esta situação que se criou sem ser através de um aumento – aqui, sim, como sempre na guerra – exponencial de violência, situação, aliás, para a qual nos encaminhamos a loucos passos largos e de corrida como, muito bem, o Papa Francisco tem afirmado, quando diz que já se está a viver a Terceira Guerra Mundial?
Numa divina ironia, a única possível boa saída para a inércia de violência em que nos encontramos mergulhados é a misericórdia, essa mesmo que o Papa Francisco quis que fosse meditada.
Francisco tem razão: ou interiorizamos rapidamente a dinâmica e a cinética da misericórdia ou iremos conhecer o verdadeiro poder dos impotentes, dos incapazes de misericórdia (o que Francisco nitidamente não é).
Março de 2017
Américo Pereira


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