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sexta-feira, 13 de outubro de 2017

Entendimento global e compromisso com as periferias Um livro-memória


O livro sobre que este artigo se debruça consta de um «Prefácio», de uma «Introdução» e de nove Capítulos, constituindo memória da Summer School / Escola de Verão que as Faculdades de Teologia e de Ciências Humanas da Universidade Católica Portuguesa realizaram no verão de 2016, em Lisboa.
O tema que orienta as várias reflexões exaradas nesta obra é o do «entendimento global e compromisso com as periferias», que põe num mesmo tabuleiro político – entendida a política em sentido nobre de busca de um possível bem-comum – quer o sentido de uma universalidade quer a sua superlativação como globalidade que se assume como tal e que, por isso, não esquece que é constituída também pelas periferias.
O mundo é mesmo um só e a não assunção do periférico como próprio seu originará uma irrecuperável fractura que porá em termos agónicos grande parte da humanidade contra a restante. De notar que provavelmente isso que se considera ser o periférico será numericamente o mais significativo. Infelizmente, ainda este modo de pensar é, se bem que de forma involuntária, etnocêntrico.
As preocupações de Francisco, o Papa, que são o pano de fundo teórico que dá horizonte cénico a este esforço de reflexão, são objectivas, logo, pertinentes, mas também são urgentes em sua pertinência.
«O mundo em que se vive contemporaneamente é o mundo em que se globalizou não a instrumentação veicular do bem anti-periférico, mas a sua activa negação, vivendo nós, aqui e agora, um movimento radicalmente agressivo – isto é, realizado por pessoas agressivas – de retorno a formas de relação ética e política entre seres humanos que não se pode não considerar senão como um processo de re-escravização, por mais esforços que os seus mentores façam por convencer os seus objectos – a grande maioria dos seres humanos actualmente existentes – do contrário.».[1]
«Neste sentido, o movimento do mundo desde o fim da Segunda Grande Guerra tem consistido fundamentalmente numa progressiva eliminação de tudo o que tinha sido obtido em termos de humanização ética e política das relações entre os seres humanos, que culminara na Declaração Universal dos Direitos Humanos, carta de princípios, não carta de valores, isto é, que estabelece algo sem o qual a humanidade não tem futuro, não meras opiniões ou meros ecos de tradições que não respeitem princípios.»[2]
Boa parte da modernidade dedicou-se a matar «Deus» e o «Homem». Tal implica consequências. Há que encontrar substitutos e tais substitutos não deixam de ser também produtos culturais. Isso que um qualquer factício conceito de «Homem» não pode substituir – o real ser humano, a real pessoa, os reais homem e mulher – existiram e operaram, agiram enquanto acontecia o que acontecia em Auschwitz, na ausência do deus morto e do Homem nunca nascido.
Algumas dessas pessoas anteciparam-se mesmo a Auschwitz, eliminando, para muitos, a negativa possibilidade do seu «pessoalíssimo Auschwitz». Referimo-nos à acção de pessoas como o nunca suficientemente mencionado Aristides de Sousa Mendes; pessoas que não invocaram em vão o nome de Deus, do vivo ou do morto, antes, negando o absolutamente vão, a vanidade da impotência dos discursos auto-apologéticos dos cobardes e a vileza dos oportunistas, salvaram, activa e penosamente salvaram, outras pessoas, assim matando o mal pela raiz, fazendo o bem. Aliás, é este o único modo real, eficaz.
Em tais tempos, os «homens» reais estavam também lutando contra todas as formas de fascismo nas diferentes frentes de batalha e morreram aos milhões, sem esperar pela ressurreição filosófica do deus morto que os impotentes querem que faça, por eles, mais uma vez e sempre, o seu trabalho em qualquer Auschwitz. Ontem como hoje.
Ontem como hoje, são estas pessoas reais as que criam, laboriosamente, sempre, penosamente, muitas vezes, isso que é o real entendimento, entendimento no e pelo bem.
Ora, apenas o entendimento, o mais global e efectivo permite isso que deve ser o outro nome da humanidade: o bem-comum.
De forma exacta, deveria dizer-se «entendimento universal», pois não há verdadeiro entendimento passível de perenidade não antecipadamente limitada sem que seja necessariamente universal.
Trata-se de realizar o bem-comum para todas as pessoas, sem excepção, em cada momento, sempre.
Não é isto uma utopia, mas a intuição da possibilidade de uma existência política, de base ética, em que todos os seres humanos possam, e, de facto, sejam o melhor que podem ontologicamente ser, em universal e total harmonia. É este o entendimento como padrão de possibilidade.
Ora, este livro, sem manias de grandeza quaisquer, é um singelo contributo para o trabalho em prol do entendimento universal.
Aqui, podemos encontrar capítulos escritos por especialistas de vários âmbitos do saber, da Engenharia Nuclear, à Filosofia, da Antropologia, à Comunicação Social e à Teologia. Trabalha-se o tema do «entendimento global» de forma transdisciplinar, aportando reflexões pessoais cientificamente fundamentadas sobre relações a montante e a jusante da «realidade entendimento».
O sentido da «globalidade» impõe-se, como se depreende da própria leitura integrada dos vários capítulos, porque a humanidade evoluiu, quer de tal haja suficiente consciência ou não, para um modo de existência em que já constitui, sobretudo fisicamente, devido à facilidade das deslocações de pessoas, de bens e até de meios de destruição, um inegável todo. A globalização já não é apenas um processo, é, mesmo, já um facto. Pense-se no que seria, pela negativa, um surto de varíola que surgisse, por exemplo, num grande evento internacional qualquer e como se «globalizaria» de forma fulminante. Não perceber este novo estado – que tem dimensão verdadeiramente ontológica, onto-ecológica, se se preferir – é estar alienado da realidade.
No primeiro capítulo, «Erradicação da pobreza: diagnóstico e soluções», Eugénio Fonseca, traça um lúcido e substantivo perfil das pobrezas, pois são várias, baseado em dados fidedignos e que deveriam tornar evidente a dimensão do problema, mormente em Portugal, estudado com detalhe, que revela quer a sua enorme dimensão quer a sua profundidade: pobres, muitos e muito pobres, grande parte deles. Realidade tendencialmente ignorada, num mundo de marketing político que visa a auto-promoção da oligarquia junto da oligarquia: estas últimas palavras são da nossa responsabilidade estrita. Sendo a pobreza algo de «económico», no sentido mais vasto desta noção – que é política –, algo como uma crise económica necessariamente agrava a situação dos pobres, a grande periferia económica de sempre. No entanto, a magna questão relativa à pobreza não é a da sua contemplação teórica, mas a da acção que tenha como fim eliminá-la. Eugénio Fonseca dedica a parte final da sua reflexão à proposta de soluções pragmaticamente viáveis, a nível global: alteração do sistema económico, política redistributiva mais justa, política de erradicação que incida nos “mais pobres”, combate ao desperdício, dar voz aos pobres, assunção da pobreza como problema de todos; ao nível de Portugal: maior envolvimento dos chamados “políticos”, adopção de uma estratégia integrada, avaliação dos impactos das políticas sociais, reavaliação e adaptação das políticas susceptíveis de aumentar a pobreza, debate anual na Assembleia da República sobre o problema.

No segundo capítulo, Micael Pereira reflecte sobre «Cultura e desenvolvimento sustentável numa perspectiva antropológica», mostrando inequivocamente que apenas a integração sem qualquer desvalorização ontológica de humanidade e meio ambiente pode permitir a continuidade sustentável das gerações de seres humanos em são convívio com isso que constitui a transcendência física mundana, aliás, possível abertura para um outro sentido de transcendência, já metafísica.

Em «A necessidade da diversidade cultural», Américo Pereira mostra como a humanidade só é possível como diversa, correspondendo a anulação da diversidade à aniquilação do futuro da humanidade.

Manuel Cândido Pimentel, no capítulo dedicado ao «Diálogo intercultural e conhecimento. O paradigma da ecorracionalidade», fundamenta o que designa por uma «nova consciência que presida à economia»,[3] erguida sobre uma nova forma de racionalidade, a «ecorracionalidade», que consiste numa «disposição do conhecimento, uma tendência à instauração de uma consciência racionalmente aberta ao mistério da natureza na sua alteridade.».[4] O Autor termina apresentando um conjunto de princípios de «interculturalidade dialógica», ancilares do novo modo de racionalidade aqui proposto.

No capítulo da responsabilidade de Nelson Ribeiro, «Os Meios de Comunicação ao Serviço do (Des)Entendimento Global», é pensado o multímodo papel dos media num mundo efectivamente globalizado, pondo em destaque o que são as suas contribuições quer para o entendimento quer para o não-entendimento, mas fazendo ressaltar a incomparável capacidade de colaboração de tais meios para uma real melhoria da existência humana, se usados em tal sentido: «[…] os media podem contribuir para um melhor entendimento entre a humanidade, tal depende dos objectivos que norteiam o uso que deles é feito.».[5]

Margarida Amaral, no capítulo dedicado a «Um olhar cultural sobre a natureza», trabalha reflexivamente a relação entre natureza e cultura, chamando a atenção para que «a compreensão de que existe um elemento comum ao homem e à natureza nos leva a ultrapassar a dicotomia, entendida como separação absoluta entre o natural e o humano, […] a natureza e a cultura».[6] Para tal, a educação assume especial relevo: «Ser um homem culto é, afinal, assumir preocupações ambientais e é compreender que os problemas ambientais, sendo um reflexo do seu comportamento cultural, só podem ser atenuados recorrendo a uma educação que fomente a própria cultura […]»,[7] cultura que é «saber, aprofundamento, procura»,[8] não de satisfações efémeras, mas de um sentido propriamente humano em que a natureza é complementar do humano, não sua antítese.

No capítulo «O contributo das ciências naturais para a paz», António Marques de Carvalho começa por mostrar como a humanidade chegou ao estado de desenvolvimento e ecológico em que se encontra, definindo as ameaças com que nos confrontamos, sem esquecer que o horizonte que permanece válido é o de «uma ecologia integral»,[9] como salienta o Papa Francisco. Se, por um lado, «sem uma ampla divulgação dos conhecimentos e da solidez do método científico, não será possível assegurar os consensos que, nas democracias, permitirão aos políticos ter a coragem de tomar medidas para cuidar do planeta a longo prazo»,[10] por outro, «o conhecimento científico da história da Terra e dos recursos minerais, o conhecimento dos ecossistemas e da biodiversidade e da interacção com as práticas económicas e sociais permitem uma melhor gestão dos recursos para um futuro pacífico e sustentável.».[11]

José Manuel Pereira de Almeida, no capítulo dedicado a «Paz e entendimento, categorias Teológicas», partindo da constatação antropológica e ética de que «todos podemos trazer uma bomba dentro de nós»,[12] interroga: «que ‘bombas’ trago dentro de mim?».[13] Percebendo a radicação da violência praticada no seio do «coração violento»,[14] assinala a «cultura de violência»[15] em que vivemos, produto humano que não necessita de seres humanos especialmente perversos, mas se contenta com «a mediocridade habitualmente aceite»:[16] «a eficácia histórica do mal passa através do consenso à volta de um deixar andar as coisas como elas vão».[17] Reflectindo sobre a «violência legitimada»,[18] a «não-violência como fraternidade»[19] e «a vida como dom»,[20] bem como o papel dos cristãos, aponta o caminho – simples e difícil – para a construção da paz: «trata-se, normalmente, de dever fazer o pequeno bem aqui e agora concretamente possível para mim.».[21] Uma leitura atenta revela que este bem, ainda que manifestamente ético e político, é, como condição de entendimento e de paz, da ordem do ontológico: é o que é o possível nosso de cada dia.

No capítulo dedicado a «A inculturação ou a questão da “evangelização e diálogo cultural”», José Nunes começa por distinguir «inculturação» de outros termos, que reflectem realidades muito diferentes, como «enculturação» ou «aculturação». Assumindo o termo «cultura» como usado em ciências sociais, mantém a relação com a noção de «factor de auto-transcendência e humanização de todo o homem e de todos os grupos humanos».[22] O paradigma de inculturação é o próprio Jesus, que assimilou a sua cultura, transformando-a, tendo, por vezes, de combater o que tinha de ser combatido porque era factor de desumanização. Expondo os fundamentos antropológicos e teológicos do conceito, bem como o processo de inculturação, percebe-se que esta se cumpre quando, fiel ao paradigma: «[…] a sua atitude é a de quem assume recriando a tradição cultural herdada. O assumir da cultura judaica era, para Jesus, uma questão de levar às últimas consequências a realidade da Incarnação […]».[23]

Os vários capítulos, na sua diversidade de abordagens, entre muitas outras contribuições para a compreensão do tema do entendimento global e compromisso com as periferias, mostram que a acção humana, num regime de entendimento, mais do que global, universal, tendencialmente elimina as periferias, não através da fácil violência da aniquilação do diferente ou do incómodo, mas através da, por vezes muito difícil, acção ética e política – cultural no seu melhor sentido – de cada ser humano como deposição do bem de que é capaz no tesouro comum (bem-comum) de uma humanidade que chegou a uma fase da sua evolução em que ou vive como um todo tendencialmente em entendimento ou, simplesmente, não tem condições de sobrevivência.
O concreto da realidade hodierna parece com forte evidência dar razão a esta tese. A via do entendimento universal humano é, assim, a via única da vida humana, a sua ecologia de possibilidade de futuro.
Cumpre, com grande alegria, ao coordenador desta obra e director da Escola de Verão / Summer School que lhe deu origem, expressar o mais profundo reconhecimento a todos os que contribuíram para o sucesso de ambas as iniciativas.
Assim, saudamos os Autores da obra: Eugénio Fonseca, Fernando Micael Pereira, Manuel Cândido Pimentel, Nelson Ribeiro, Margarida Amaral, António Marques de Carvalho, José Manuel Pereira de Almeida, José Nunes: é o seu trabalho que permite esta apresentação;
Saudamos o Senhor Presidente da Cáritas Portuguesa, Prof. Eugénio Fonseca; saudamos todos os que contribuíram para a construção e publicação da obra em apresentação, especialmente o Senhor Engenheiro António Lages Raposo e a Senhora Drª. Luísa Correia e restante equipa;
Seria da maior ingratidão não saudar todos os que trabalharam para que o acto de pensamento que esteve na origem científica desta obra, a Escola de Verão dedicada ao tema homónimo do livro, pelo que nos achamos na obrigação de o fazer:
Deste modo, agradecemos à Exma. Senhora Profª. Doutora Maria da Glória Garcia, Magnífica Reitora da Universidade Portuguesa; ao Exmo. Senhor Dr. Jorge Lobo de Mesquita, Presidente Substituto da Comissão Nacional da UNESCO, em substituição da Senhora Presidente; ao Exmo. Senhor Prof. Doutor João Duarte Lourenço, Director da Faculdade de Teologia; ao Exmo. Senhor Prof. Doutor Nelson Ribeiro, Director da Faculdade de Ciências Humanas; ao Exmo. Senhor Prof. Doutor Manuel Cândido Pimentel, Coordenador da Área Científica de Filosofia; ao Exmo. Senhor Prof. Doutor Carlos Morujão, Director do Centro de Filosofia da UCP; ao Exmo. Senhor Doutor Joaquim Melro, Director do Centro de Escolas António Sérgio; à Exma. Senhora Drª. Elizabeth Silva (UNESCO);
Uma palavra de bem-haja é devida aos Moderadores das sessões da Escola: Profª. Doutora Inês Bolinhas, Mestre Juan Ambrosio, Dr. Paulo Rocha.
Ao Director Pedagógico da Escola de Verão, Mestre Juan Ambrosio, agradecemos os sábios conselhos, também os relativos à elaboração do livro.
Inclino-me perante o trabalho de mediação dos Membros das Comissões Científica e Organizadora/Executiva: apenas os que ainda não foram mencionados: Prof. Doutor Samuel Dimas, Mestre Cecília Tomás, Mestre Francisco Vaz, Drª. Ana Paula Graça, Exma. Senhora D. Elisabete Carvalho, Exmo. Senhor Nuno Lopes.
Especial destaque merece a acção irrepreensível e de uma impecável dedicação da Mestre Marta Salvador, a quem devemos a composição do tema gráfico da capa do livro e a quem dedicamos um carinhoso bem-haja.

Lisboa, de Junho de 2017
Américo Pereira




[1] PEREIRA Américo (coord.), Entendimento global e compromisso com as periferias, Lisboa, Editorial Cáritas, 2017, p. 14.
[2] Ibidem.
[3] Op. cit., p. 83.
[4] Op. cit., p. 84.
[5] Op. cit., p. 101.
[6] Op. cit., p. 105.
[7] Op. cit., p. 114.
[8] Op. cit., p. 106.
[9] Op. cit., p. 120.
[10] Op. cit., p. 121.
[11] Op. cit., p. 122.
[12] Op. cit., p. 125.
[13] Op. cit., p. 125.
[14] Op. cit., p. 125.
[15] Op. cit., p. 126.
[16] Op. cit., p. 126.
[17] Op. cit., pp. 126-127.
[18] Op. cit., p. 129.
[19] Op. cit., p. 129.
[20] Op. cit., p. 131.
[21] Op. cit., p. 127.
[22] Op. cit., p. 138.
[23] Op. cit., p. 144.

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