Se atentarmos ao que é o próprio da
riqueza humana, podemos imediatamente perceber que a única verdadeira riqueza
humana coincide em absoluto com o que cada ser humano é como realidade
ontológica: o meu ser próprio é a minha grande e única riqueza. Tal riqueza
ontológica matricial é a fonte possível de qualquer outra riqueza possível.
Toda a riqueza possível que, assim, transcende a pura riqueza ontológica de
cada pessoa, é do domínio ético, pois tem a sua única origem, absoluta origem,
na mesma pessoa como riqueza ontológica, mas, agora, em acto de realização de
algo que imediatamente passa para lá de tal mesma riqueza ontológica inicial.
Esta transcensão cria o que é o domínio político, domínio da relação entre os
actos das pessoas, actos que são a possibilidade de construção de uma riqueza
não apenas individual, mas comum, que recebe o nome de bem comum. A comum
riqueza é o bem comum.
Mas a possibilidade de produção de
riqueza é, em sua mesma possibilidade de acto, possibilidade de não produção de
riqueza ou mesmo possibilidade de destruição de riqueza já anteriormente
produzida e posta como bem comum. Tradicionalmente a cada um destes actos de
negatividade ontológica segundo a riqueza possível de um bem comum chama-se
mal: o mal é, assim, o produto negativo da possibilidade de produção de riqueza
não apenas em termos individuais, mas também comunitários.
Para que a riqueza possa ser produzida
ou criada, são necessários meios: tais meios são os objectos de que o ser
humano dispõe para construir a sua existência encarnada, na forma da economia,
que depende sempre do trabalho e da técnica.
Antes de pensarmos a relação de
trabalho e de técnica com a riqueza propriamente humana, vamos reflectir acerca
do absoluto presente em tal riqueza, a fim de sabermos se estamos a falar de
uma simples produção ou de algo de muito mais fundamental, de «criação».
«Produzir» significa rearranjar a
ordenação de algo já existente, de modo a pôr em realidade algo de diferente.
Tradicionalmente, afirma-se que nisto não há coisa alguma de novo em sentido
absoluto, pelo que tal acto produtivo não pode ser encarado como um acto
criador, que implica sempre um absoluto de novidade, novidade que não pode ser
reduzida a algo de anterior e que, deste modo, é como se fosse “retirada” do
nada.
Ora, toda a novidade, no que tem de
absolutamente diferente do que já existe, é algo de absoluto, a nada redutível,
pois, se o fosse, seria algo que já existiria. Assim, toda a novidade é a
introdução de um absoluto na realidade já existente, modificando-a
absolutamente, ainda que de forma infinitesimalmente significativa, mas, ainda
assim, significativamente notável. Tal é inegável do ponto de vista teórico.
Deste modo, toda a novidade, enquanto
tal, só pode ser contrastada ontologicamente com o nada de si própria que havia
antes de ser posta. Quer isto dizer que toda a novidade é, só por ser novidade e por tal novidade introduzir um absoluto
ontológico no real, criação.
Toda a acção humana é, portanto,
criadora, quando introduz novidade ontológica no real: mas é-o apenas quando
tal novidade é positiva, isto é, quando aumenta a riqueza ontológica presente
no real. Quando a acção elimina positividade ontológica presente no real, tal
acção é destruidora e a destruição é a antítese da criação.
Ontologicamente, quer a criação quer a
destruição exigem trabalho no sentido não apenas físico de implicarem um uso
qualquer de uma força qualquer numa qualquer duração – que implica sempre
espaço numa realidade nunca isenta de movimento –, mas também no sentido
antropológico de um exercício da capacidade de movimento humano modificador da
realidade própria ou transcendente.
Podemos, pois, perceber que a riqueza
propriamente humana é sempre fruto quer do trabalho humano quer de toda a
técnica que tal trabalho implica e envolve.
Estamos também habituados a chamar
riqueza a algo que não é propriamente humano, como, por exemplo, minerais ou
forças presentes na chamada natureza, termo com que erradamente designamos a
parte material do universo, especialmente a sua parte mais próxima de nós, o
Planeta Terra. Mas não é difícil perceber que, sem o trabalho humano e a
técnica que implica, nada de tais realidades constitui riqueza alguma real,
apenas potencial: todo o ferro do Planeta, sem o trabalho de que tal mineral
necessita para que se transforme em tudo o que estamos habituados a dele
usufruir, não seria riqueza real alguma, mas apenas um mineral, que é o que é
na independência do ser humano e da sua, aqui necessária, capacidade e
realidade de trabalho.
Compreende-se mais facilmente assim a
posição de Santo Agostinho, e de uma forma que nem tem sequer de apelar para
uma formulação religiosa, quanto ao direito à posse de riquezas: não só estas
são fruto do trabalho do ser humano e, portanto, indissoluvelmente ligadas a
esse trabalho e a quem o produz, como, depois de produzidas, as riquezas,
porque são património exclusivo de quem as produz, se se quer que haja cidade,
têm de ser postas ao serviço do bem comum. Quem assim não fizer não merece as
riquezas que tem, pois, ainda que sejam criação sua, a sua recusa de fazer
cidade com elas, exclui tal pessoa do bem comum, por recusa de partilha do bem
que possui com outros, tornando-a humanamente indigna de possuir um bem que em
si se esgotará, isto é, que não participará para a construção, criação, de um
bem para todos.
É claro que, para Santo Agostinho,[1]
todos os bens, em última análise, são devedores do acto de criação divina, o
que agrava ainda mais a recusa de partilha, pois recusa-se partilhar um bem que
em última análise é fruto de um dom inicial prenhe de possibilidades criadoras:
o doado recusa-se ao dom, o que é blasfemo em termos religiosos. A questão que
se põe é se não o será sempre, isto é, mesmo fora de âmbito religioso, no campo
puramente antropológico?
A construção da cidade, isto é, da
possível comunidade política humana é uma questão de comunhão dos frutos
criados pelo trabalho e do trabalho como capacidade e operação criadora: ao
partilhar o meu trabalho, eu partilho-me como os demais seres humanos no que
tenho de mais profundo em mim e que é a minha capacidade criadora. A recusa de
tal partilha, se universalizável, eliminaria imediatamente a possibilidade da
cidade e, com ela, da própria humanidade. Tal é a importância do trabalho como
criador de riqueza, em sentido ontológico.
Julho de 2017
Américo Pereira
[1]
Ver nosso estudo em: PEREIRA, Américo, «Da legitimidade da posse das riquezas à
luz de dois Sermões agostinianos (15/A e 50)», in Didaskalia, vol. XLIV, fasc. 2, 2014, pp. 65-86.
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