CORO

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sexta-feira, 13 de outubro de 2017

A fé como acto político

Os termos «política» e «político» têm a sua origem no termo helénico «polis» (πόλις), que significa, numa tradução demasiado rápida, «cidade». Porquê esta classificação, nossa, de «demasiado rápida»? Porque o termo «cidade», pela equivocidade que assumiu, já não significa coisa alguma, independentemente de uma concretização nocional ou conceptual.
Não perceberemos o que está de fundamental em jogo quando nos referimos a «política», que é o termo mais geral e, assim, o que aqui tem maior relevo epistemológico, se não percebermos o que o termo «polis» significava para quem o criou. Que é isso da «polis»?
Antes de mais, e ontologicamente, quer dizer, segundo o seu ser próprio e irredutível, a «polis» é uma relação. A «polis» é sempre do âmbito do relacional: sem relação, não há «polis». Isto significa que a «polis» nunca é do âmbito do irrelacionável, algo como uma substância isolada. A haver uma substância da «polis», tem de ser do âmbito da relação. Tal tem consequências, verdadeiramente «políticas», fundamentais. Note-se que grande parte do debate que hoje acontece a nível do que vulgarmente se chama «político» ocorre ao nível da questão das relações.
Mas a «polis» é uma relação entre quê? É uma relação entre seres humanos. Apenas entre seres humanos: na nossa experiência – e não possuímos ou temos acesso a qualquer outra experiência que não esta, pessoal e intransmissível –, não há algo como «poleis», por exemplo, de anjos ou de abelhas, pese embora a constante torrente de asneiras que a respeito de tais designações vai acontecendo, criando uma equivocidade teórica com efeitos desastrosos a nível epistemológico, que se repercutem nos níveis antropológico, ético e político.
A «polis» e, consequentemente, tudo o que a ela diga respeito é sempre e só um assunto humano. Mas é o assunto humano por excelência. Porquê?
Porque a «polis» como relação é logicamente anterior ao ser humano como coisa individual. Nenhum indivíduo humano é ou pode ser logicamente anterior à «polis» porque nenhum ser humano teve a sua origem num qualquer acto espontâneo auto-produtor, isto é, precisou sempre de ser produzido por meio de uma relação entre outros seres humanos, os seus, no mínimo, progenitores biológicos; no máximo, pais, no verdadeiro sentido antropológico, ético e político do termo.
Situamo-nos perante uma questão lógica sem resolução: por um lado, a «polis» é a relação entre pelo menos dois seres humanos, pelo que, necessariamente, tem de haver pelo menos dois indivíduos humanos, previamente não relacionados, que, ao relacionarem-se, criam, literalmente criam, isso que é a «polis». Indiscutível. Só que estes dois seres humanos, para poderem ser os dois primeiros criadores de uma cidade, tiveram de surgir de um nada humano, pois, caso contrário, teriam surgido de uma relação, o que originaria uma remissão ao infinito. Percebemos, agora, a profundidade ontológica e antropológica da «política», como suporte lógico da possibilidade da humanidade e de humanidade. É sobre esta base lógica, onto-lógica, que o que isso que é a humanidade enquanto histórica assenta.
Do ponto de vista lógico, o surgimento da «polis» nunca terá explicação possível. Não admira, assim, que os velhos mitos que procuraram explicar a existência da realidade política sejam mitos metamórficos[1] ou mitos criacionistas, em que a realidade política é dada precisamente como um dado. É o caso do mito adâmico judaico-cristão, em que a «polis» é dada por criação: quando de si próprios se apercebem, já Adão e Eva estão em relação, em acto político. Não criam a «polis»; pelo contrário, no caso vertente, destroem-na.
Originalmente, então, a criação da «polis» implica a relação entre dois seres humanos não politicamente produzidos, não em termos estritamente humanos. Esta evidência aplica-se mesmo ao necessário substrato lógico das pesquisas antropogónicas e politogónicas levadas a cabo pelas escolas de tipo páleo-arqueo-antropológico: quando descobrem algo de incontrovertivelmente humano – e não, não é uma Lucy qualquer –, descobrem sempre já a humanidade pronta: é o que se nos depara em Altamira, em Lascaux, no Vale do Coa e em tantos outros lugares já inquestionavelmente humanizados.
Catar pulgas a entes formalmente semelhantes não constitui «polis», pois não é um acto de um ser humano, isto é, a menos que seja um ser humano a fazê-lo. Não há «cidades de abelhas» senão na mente de cientistas intelectualmente preguiçosos, que resolvem mal, com más metáforas projectivas, assuntos que deveriam ser bem resolvidos atribuindo o sentido próprio a cada acto. Ora, os seres humanos só podem perceber os actos de seres humanos e, ainda assim, com toda a dificuldade que a distância necessária para que haja relação política implica.
Que distância é esta? Não é evidentemente uma distância física; psicológica, apenas; afectiva, apenas; imagética, apenas; volitiva, apenas. Trata-se de uma distância segundo o ser: para que não nos confundamos em termos dos nossos seres, somos ontologicamente separados; ontologicamente «incomunicáveis» é a designação correcta.
A nossa comunicação, toda ela, é do âmbito do político, pois dá-se, e dá-se apenas, ao nível da relação entre seres humanos, como seres separados ontologicamente que somos.
Então, o que é que se comunica? «Protocolos», o que se comunica são protocolos. Linguagem, se se quiser; mas linguagem que tem de obedecer a protocolos partilháveis pelos vários seres humanos em relação. É esta a razão pela qual não podemos comunicar senão ilusoriamente, na forma do sentido, com outros seres, a menos que estes seres sejam capazes de usar os mesmos protocolos que nós: teremos de humanizar o equivalente, na abelha, ao sentido, antes de realmente comunicarmos com ela; ou, então, «abelhizar» o nosso sentido.
Percebe-se, assim, a razão profunda por que, por exemplo, é miticamente possível comunicar com anjos: é que estes são autênticos protocolos de comunicação humana, mas sem carne, isto é, são relações de sentido que transcendem a condição histórica dos seres humanos: não têm, por exemplo, de aprender línguas; comunicam ou comunicam-se directamente como sentido. Tal é impossível no nosso âmbito.
Os seres humanos são seres históricos, com tudo o que tal implica em termos de mediações, isto é, de impossibilidade de acção, qualquer seja, sem o uso de meios. Não há magia no mundo – não confundir com maravilha, que é comum (o mundo é comummente maravilhoso como mediação).
Sermos entes de mediações significa que somos entes necessariamente éticos, isto é, que têm de se movimentar autonomamente para que possam, em absoluto, ser.
É neste âmbito mediacional que se enraíza a possibilidade da «polis»: para que a relação, há pouco explorada, entre pelo menos dois seres humanos aconteça é necessário que pelo menos um deles decida – isto é, empreenda, aja, no sentido de comunicar com o outro. Este é o cerne da ética como lugar motor próprio de cada ser humano e, assim também, da «polis», na forma do acto político – de todos os actos políticos – acto irredutivelmente próprio de se aproximar do outro para com ele comunicar.
Nem sequer estamos a qualificar o acto. Pode ser um acto qualquer de aproximação, com uma finalidade qualquer. Como é evidente, o futuro desta relação incoativa depende da finalidade, mas não é isso que é o fundamental, antes, o primeiríssimo passo de aproximação. Não é sequer preciso realçar a importância que este tema tem na situação política actual do mundo, como, aliás, sempre teve.
A «polis» nasce, assim, do acto em que a interioridade ética de um qualquer sujeito humano é transcendida no sentido do estabelecimento de relação de comunicação com um outro. Mesmo que o outro recuse prosseguir a relação, já não pode escapar a ter estado em relação. A «polis» teve a extrema brevidade de dois actos, o da aproximação e o da recusa, mas, em absoluto, aconteceu.
Este exemplo teórico extremo permite perceber a força antropológica da relação que cria a «polis», logo, a força antropológica da própria «polis», da «coisa política» em acto. Compreende-se, agora, muito melhor, por que razão não pode haver humanidade sem «polis», sem «política». Também se começa a compreender muito melhor a razão pela qual a política pode ser a actividade mais nobre da humanidade, embora esta última habitualmente teime em que não o seja.
Todo o acto político tem como seu criador antropológico um acto ético, como tal, irredutível. Percebe-se, também, que uma sociedade – não é bem uma «polis» – de escravos, para que possa ser criada, depende da redução ética de esses a quem se quer escravizar, receita vetusta de todos os candidatos a tiranos.
Para que não seja o triste exemplo da recusa de relação esse que define a cidade – já está na altura de lhe chamarmos assim, porque, nesta fase da nossa reflexão, já quer dizer algo de muito diferente da má tradição invocada inicialmente –, tem de haver relação como acto de comunicação possivelmente perene entre dois sujeitos éticos, duas pessoas. Duas entidades com capacidade permanente de escolha no sentido da manutenção da relação.
Ora, é aqui, neste lugar lógico da relação entre duas entidades propriamente éticas, que surge o elemento «acto de fé»: não é possível haver comunicação entre duas entidades éticas, quaisquer, sem que haja reciprocidade de actos de fé. É evidente que esta fé não é a da ordem do teologal, mas é, no entanto, a mais básica, sem a qual não pode haver a teologal, de que a outra é a matriz antropológica.
Trata-se da fundamental confiança. Nenhum acto é humanamente possível sem que seja literalmente in-formado e logicamente precedido por um acto de confiança: ninguém age de modo algum, se não tiver confiança de que esse acto em si mesmo – o que implica as suas consequências humanamente pensáveis – é confiável: como dar o possível próximo passo, se tal passo me pode precipitar, em última análise, no nada?
Esta é a matriz lógica de toda a possibilidade de acção propriamente humana: sem tal, não há um acto humano, mas algo de mecânico ou meramente biológico, isto é, do ponto de vista antropológico, ético e político, um não-acto.
Então, na raiz mais profunda da possibilidade e da realidade da «polis» está um acto de fé.
A fé – mesmo a teologal, que diz respeito à possibilidade de estabelecimento de «polis» com Deus – assume uma dupla dimensão política: primeiro, está na base de todo o acto ético em sua transcensão criadora da política, através da efectivação da relação; segundo, como acto de relação, é, por essência, um acto político.
O que temos de nos perguntar, neste nosso momento político global que vamos vivendo, é em que estado está o acto de fé de cada instante de cada pessoa que cria isto que é a «polis» como relação entre seres humanos, em forma global, mesmo já universal.
De facto, quando se diz que as pessoas perderam «a confiança nos políticos», afirma-se algo muito mais profundo do que apenas uma perda de confiança psicológica ou política, em sentido comum: vivemos tempos em que sistematicamente o acto de fé fundamental em que assenta a coisa política se vai enfraquecendo. É mesmo a chamada “sociedade” que se está a desintegrar por falta de fé.
E é realmente «falta de fé nos “políticos”», só que os “políticos” não são um «eles», mais ou menos anónimo, somos todos nós, estes que deixámos de acreditar na possibilidade de comunicar humanamente com o outro, isto é, que deixámos de acreditar na possibilidade da cidade como acto de fé dos seres humanos nos seres humanos, de que tudo o mais não é, senão, apenas, mais ou menos superficial ancilaridade.
Perdemos a fé uns nos outros. E tal sucedeu porque a fé não é a condição lógica última para a «polis», mas é precedida por uma outra condição, mais funda, que é o necessário acto de amor como suporte para o acto ético de aproximação ao outro. E é este sentido do bem do outro como motor da minha relação para com ele que, estando moribundo, está a matar a possibilidade da fé: se não amo o outro, como acreditar na possibilidade da relação com ele?
Terminamos com uma simples e claríssima citação do Papa Francisco, do § 58 da sua Laudato Si’: «Estas acções não resolvem os problemas globais, mas confirmam que o ser humano ainda é capaz de intervir de forma positiva. Como foi criado para amar, no meio dos seus limites germinam inevitavelmente gestos de generosidade, solidariedade e desvelo.».[2]

Américo Pereira
Maio de 2017



[1] Em que, por exemplo, um ser não-humano se metamorfoseia num ser humano, assim escapando à questão lógica paradoxal da sua origem já humanamente política.
[2] PAPA FRANCISCO, Louvado sejas. Carta encíclica Laudato si’ sobre o cuidado com a casa comum, Prior Velho, Paulinas, 2015, § 8, p. 42.

Fácil violência, difícil misericórdia

Nas capas dos cadernos que, há muito tempo, recebi quando iniciei a Escola Preparatória, encontrava-se inscrita a seguinte máxima: «a violência é o argumento do incompetente».
Várias dezenas de anos de estudo da guerra demonstram-me a radical verdade de tal inscrição.
 A violência é sempre manifestação de incompetência, de uma incompetência que promana de algo muito profundo na ontologia humana, que é propriamente a negação do que há de activo na ontologia humana e que constitui, literalmente, a impotência ética, a impotência da acção no sentido do bem.
Se fosse possível a magia de tornar a prosopopaica humanidade em real pessoa, poder-se-ia dizer que esta mesma humanidade sempre soube de tal, ou, pelo menos, sempre desconfiou de tal. Esta noção de impotência ética – que é onto-antropológica, pois encontra-se na própria matriz activa do ser humano, na original fonte de todo o seu ser como acto próprio – é isso que sempre surge nos mitos cosmogónicos e cosmológicos, quando, precisamente, a cosmogonia se revela impotente para o bem, quando a cosmologia se torna numa qualquer variante de uma «caologia» de uma «cacologia»: quando o mal surge. E surge sempre.
É assim em todos os mitos a que acedi. O mal é sempre da ordem da impotência. Quando bem disfarçado, parece ser da ordem da potência, mas, olhado mais atentamente, trata-se sempre de uma potência relativamente menor, logo, na menorização que é, de uma impotência.
É a impotência do Gilgamesh, que pensa que quer a vida eterna, mas que a não agarra quando a tem na mão, literalmente. A impotência do Satã que, esperto, questiona, junto de Deus, a bondade de Job; a impotência da mulher e dos falsos amigos de Job, bons para acefalamente criticar o que não compreendem, maus para amar o que necessita de amor. A impotência de Aquiles perante o desejo de vilipendiar o seu contra-par, Heitor, vileza que recebe como prémio a morte entrada pelo único poro possível, com a divina pontaria que demonstra o que é a verdadeira potência.
Mas é também a impotência de homens e deuses perante a grandeza humana de Édipo, pelas Erínias guardado no divino santuário da ordem do mundo. Humana potência indefectível do errante e sofredor Édipo, cujos pés padecem por ancestrais impotências de deuses apenas potentes quando metamorfoseados em divinas bestas violadoras de meninas.
A impotência de Creonte perante a avassaladora potência de Antígona, fiel seguidora dos pés de seu pai, sem medo de homens, amando a ordem e, nela e com ela, os irmãos, que, na violência da desordem, um a outro se mataram.
Por fim, a impotência do diabo perante o senhorio da vontade de Jesus, manifestando, na oposição do «não» à tentação de poder dos impotentes, o modelo do que será a vitória sobre a impotência das impotências que é a morte.
E não nos enganemos: esta morte sobre que Cristo triunfa não é a «irmã Morte», de Francisco de Assis, mas a morte como aniquilação. Esta morte não tem irmãos ou relação qualquer. É o absoluto da impotência e chama-se «nada».
Potência absoluta, impotência absoluta: Deus e o nada.
Voltemos à máxima inscrita no velho caderno. Deus, que é exactamente omnipotente – percebe-se que como bem, para o bem – é, assim, esse que não usa violência. A violência é a marca do impotente, do incompetente. É porque é incapaz de criar que o impotente é violento: no ilusório modo perverso de o acto do violento ser, nada parece ser mais próximo do criar do que o destruir; ambos parecem demonstrar capacidade infinita de poder. É o que a imagem do contraste entre o «sete» divino da perfeição e o «seis» diabólico da «quase-perfeição», da paródia da perfeição, simboliza.
No entanto, de facto, toda a criação, porque toda ela introduz um absoluto de novidade no ser – irredutível a tudo o que antecedia –, é sempre manifestação de infinito poder, tal é a «energia», o acto necessário para «arrancar» o novo ao “nada” de si próprio que “substitui” (sim, a expressão é mesmo difícil, pois estamos no limiar do pensável).
Mas a energia, o acto necessário para destruir seja o que for – dado que não é possível aniquilá-lo, «nadificá-lo» – é sempre finita, logo, infinitamente menor.
Se a criação é própria dos «poietas», dos poetas do ser – como análogos de Deus, poeta infinito –, a violência é própria das bestas, dessas em que se tornam os seres humanos quando, em vez de introduzir bem no real, neste destroem bem ou impedem bem de surgir. É esta a definição do pecado, assim sinónimo de violência. É isto que somos, que eu sou quando peco: violento, impotente, incompetente.
Quanto aos que defendem algo como a «violência criadora» ou a «destruição criadora», conviria pensar no que é que há de criador em destruir um bem? Não está em causa o que pensam que é um bem, o que é subjectivo, mas algo que é ontologicamente um bem, como, por exemplo, o ser dos próprios. Ou será que, como quando as incómodas excepções ameaçam a validade dos argumentos, a eles, aos próprios, não se aplica o “conceito”?
É violência todo o acto que atenta contra um bem concreto ou possível de alguém (por extensão, de algo). Deste ponto de vista – que nos ajuda a perceber melhor e de forma realista o que em Francisco de Assis parece ser um traço puramente afectivo –, toda a nossa existência se funda em actos de violência, de que, aliás, não nos podemos, em absoluto, alienar. Biologicamente, vivemos da violência que necessariamente exercemos, como seres heterotróficos que somos, sobre outros seres.
A resposta radical extrema residiria na negação desta condição, pela nossa mesma morte. Mas esta não é também, nestas condições, uma violência? Se não é, que estamos ainda a fazer vivos?
Na realidade, estamos condicionados a viver – é esta a condição mundana, não há outra – entre a violência da negação do nosso próprio ser e a violência que temos de exercer para podermos continuar a ser. É esta condição que a expulsão do paraíso significa. No paraíso, não há violência, pois nada é destruído. A condição extra-paradisíaca significa que a vida sempre se mantém sobre o sacrifício da vida.
Então, estamos condenados à violência? De um ponto de vista biológico parece que sim. E, se fossemos apenas seres biológicos, toda a nossa vida seria esta dinâmica de violência. Aparentemente.
Mas, na pura biologia, inconsciente de se ser o que se é, há violência?
Precisamente, não. Na ratio própria da natureza não humana, o que se encontra sempre é uma dinâmica e uma cinética de força, de forças, em que o que tem de ocorrer ocorre, sem que se possa falar de algo como «violência».
A violência não pode ser sinónimo de força ou, então, tudo o que é violência em termos humanos perde o seu sentido próprio, diluído na semelhança com o uso da força na natureza não humana.
Nada melhor para desculpabilizar um SS que assassinou ou ajudou a assassinar milhares de crianças em Treblinka ou em Auschwitz, por exemplo, do que comparar a força dos seus actos com a força dos actos de um macho de leão que mata instintivamente os filhotes da leoa que naturalmente se movimenta para possuir. Tão violento é o SS quanto o leão? Então, o SS tem o mesmo mérito ou demérito que o leão.
Não foi um mundo intelectualmente alicerçado sobre este tipo de relativização o mundo, este mundo que contemporaneamente se construiu e de que agora parece haver quem finalmente se dá conta de ser como é?
Não se tem vindo a optar globalmente – não é o mesmo que «universalmente», o que seria manifestamente falso – pela facilidade da humana violência, a todos os níveis, negligenciando a trabalhosa e difícil misericórdia? Que é isso de um mundo de competitividade sem violência e necessárias vítimas? Que é isso de um mundo de valor construído não sobre a realidade de bens económicos – temos ironicamente de repetir – «reais», mas sobre a irrealidade de outros valores, por exemplo, fazendo dinheiro a partir de dinheiro, isto é, insuflando vazios símbolos, que é o que o dinheiro é?
Como posso passar o tempo todo – o acto todo – a competir, pensando que o que chega em segundo lugar é o «primeiro dos últimos», sem com isso produzir violência? Como viver na crista da onda civilizacional às custas do trabalho escravo de outros sem com isto produzir violência?
Por fim, como resolver esta situação que se criou sem ser através de um aumento – aqui, sim, como sempre na guerra – exponencial de violência, situação, aliás, para a qual nos encaminhamos a loucos passos largos e de corrida como, muito bem, o Papa Francisco tem afirmado, quando diz que já se está a viver a Terceira Guerra Mundial?
Numa divina ironia, a única possível boa saída para a inércia de violência em que nos encontramos mergulhados é a misericórdia, essa mesmo que o Papa Francisco quis que fosse meditada.
Francisco tem razão: ou interiorizamos rapidamente a dinâmica e a cinética da misericórdia ou iremos conhecer o verdadeiro poder dos impotentes, dos incapazes de misericórdia (o que Francisco nitidamente não é).
Março de 2017
Américo Pereira


Pessoa e mediação


«Quem me dera [...] contemplar tudo como se fora o viajante adulto chegado hoje à superfície da vida!
[...] Ver o polícia como Deus o vê. Reparar em tudo pela primeira vez, não apocalipticamente, como revelações do mistério, mas directamente como florações da realidade.»[1]


Quantas vezes, negando a nossa essência mesma de seres humanos, desejamos ser entidades puramente intuitivas, capazes de tudo conhecer directamente, sem mediações, sem tempo e ou espaço, sem esforço, sem dor ou sofrimento, sem sensibilidade, sem consequências negativas e com causas domináveis.[2] Tudo ver, tudo ouvir, tudo cheirar e tocar e saborear, tudo compreender: mas para tudo ser ou para tudo dominar? E persistimos nesta dilaceração entre a aspiração de um ser finito, com sonhos de infinitude, que quer experimentar infinitamente tudo e a perversa vontade de um ser finito que quer tudo ter sob o seu poder.
O modo da presença do ser humano, da pessoa, ao ser é um modo finito, potencialmente infinitizável – dado que essencialmente nada obsta a que essa presença seja continuada –, mas que não funciona sem mediações. A grande mediação é a sua própria presença, aquilo a que poderíamos chamar a sua unidade semântica própria – algo que permanecerá para sempre inabarcável, pois não pode abarcar-se a si mesma como um todo, no seu acto mesmo – fazendo com que cada acto de relação só seja possível a partir de isso mesmo que é enquanto unidade semântica própria: daqui, a incapacidade de poder haver uma real total intersecção de universos compreensivos, dado que cada universo compreensivo depende da actividade de si mesmo como unidade semântica, unidade que é diferente de presença para presença. (Note-se que isto inviabiliza qualquer intuito de absoluta objectividade, no sentido de uma objectividade estabelecida por inter-objectividade que seria uma inter-subjectividade, cuja intersecção daria a pretendida inter-objectividade.)
Assim, e logo no que de mais matricial o acto da presença de cada homem tem, o acto de relacionamento com apresenta sempre um carácter de irredutibilidade a um qualquer outro, permanecendo sempre marcado indelevelmente pela sua origem diferenciada. A primeira e fundamental mediação é a da própria matriz activa do acto humano que se relaciona. Toda a relação é mediada. Mesmo a pura intuição dá-se em um seio activo próprio que é o que é, é diferente de tudo o mais e assume essa intuição propriamente, diferentemente de qualquer outro. Uma intuição absolutamente pura e sem mediações implicaria um acto infinito, pois só este pode estar em coincidência consigo mesmo, isto é, sem qualquer mediação.
Toda a relação é mediada. Toda a relação é mediata: ela só aparece como imediata já no seio do acto que visita, aí, depois de se dar – mediadamente – aparece como imediata. E é, mas é-o só como presença no seio daquela unidade semântica, não como relação dessa unidade semântica. É desta diferença que habitualmente nos esquecemos. Mesmo a presença aparentemente mais imediata é uma presença mediada pelo modo como a relação se dá, modo esse que acaba por dissimular o carácter não imediato dessa relação. O mundo – das relações, e o mundo é sempre um mundo de relações, ou não é coisa alguma – é sempre um mundo diferente de unidade semântica para unidade semântica, de pessoa para pessoa, para utilizarmos uma linguagem menos pedante. O mundo como unidade das relações relativas à presença de cada ser humano é uni-pessoal e intransmissível, incomunicável enquanto mundo, isto é, enquanto unidade de relações e unidade de sentido. Isso nasce como possibilidade com cada pessoa, cresce com ela e com ela morre, num processo que define exactamente o carácter vital, biológico, num sentido hermenêutico muito profundo, da unidade semântica que é o homem na sua essência.
Como unidade semântica, o ser humano é sempre uma entidade relacional mediadora. Esta mediação coincide com o seu acto próprio e assume um carácter que se poderá denominar como um bíos hermeneutikós, uma vida interpretativa, uma biologia em que o bíos e o lógos formam uma unidade indissociável de acção e sentido. É esta unidade indissociável de acção e de sentido que é o grande mediador: tudo por ela passa, tudo nela assume sentido; tudo o que por ela não passar não é, pois não tem qualquer referência. A grande grelha interpretativa é o próprio ser semântico de cada um – em acto, esse ser coincide com o próprio ser, não sob a forma de uma redução finita, mas sob a forma de uma possibilidade infinita de referência, de semantização, de criação de sentido.
É sobre esta matriz semântica total que vem fundar-se o sentido da interpretação. O acto de ser de cada pessoa é uma permanente interpretação. Mas esta interpretação não é uma imposição de poder sobre o possível da relação, como que escravizando-o ainda antes da sua vinda ao ser pela e na relação. Interpretar não é vergar o que se relaciona ao molde da relação, é preparar esse molde para a adveniência do que houver que vir, se houver. Começa por ser um exercício de extrema humildade, como abertura para a adveniência de coisa nenhuma, pois esta possibilidade é não só possível como é a mais radical de todas: e é a possibilidade da in-continuidade absoluta da unidade semântica, por falta de relacionabilidade, em termos absolutos. Mas a abertura para a adveniência é um estar preparado para a positividade de uma relação que é acto, acto em que a unidade semântica do que se abre se continua e onde essa continuidade se descobre como o ponto receptor da relação que advém, adveniência que a relaciona com algo que a faz ser, ser em um acto que se vai descobrindo configurar-se como um mundo, mundo de relações.
O mundo não é o que está lá fora de mim, pois não há propriamente fora de mim, mas uma presença semântica que sou eu e faz nascer em mim dimensões que transcendem o que posso perceber como exactamente meu, apenas meu, que não posso reduzir em sentido ao meu puro sentido, pois, reduzidas a esse sentido, deixariam de ter sentido próprio. Ora, o que a presença das relações que formam em mim o mundo me faz perceber é exactamente o sentido da transcendência de parte desse mesmo sentido, transcendência que nunca poderei provar em absoluto, mas cujo sentido próprio irredutível integra a presença que em mim se apresenta.
O mundo aparece, assim, como este conjunto total de relações que constituem a presença que em acto constitui a semântica própria de isto que sou eu. Coincide com o sentido, maior ou menor, que essa mesma presença tem. Coincide com o sentido que é a unidade semântica que me constitui. O mundo sou eu, como unidade semântica.
Todo o que é relação constitui esse mundo. Esse mundo é toda a relação, não individualmente considerada – o que, aliás, não faz qualquer sentido – mas considerada na sua integração semântica total. O mundo aparece, deste modo, como uma grande trama relacional, trama activa, em que toda a relação vem ser integrada e onde ganha significado, que nunca é próprio num sentido atómico ou exclusivista, mas num sentido de imbrincação com o todo dessa trama, sentido contiguísta e inclusivista, no qual cada nova relação se torna em um novo todo que modifica o todo semântico do acto de presença de cada ser humano: não há, assim, relações ou actos isolados ou sem significado – todas as relações e todos os actos assumem significado, que é próprio porque é propriamente uma modificação no todo semântico do acto de cada pessoa. O mundo é uma possível integração infinita de relações e de elaboração semântica; um acto de integração actual com horizontes infinitos e infinita vocação.
Assim sendo, interpretar é actualizar a possibilidade infinita da relacionabilidade em sentido, isto é, em algo que constitui o ser mesmo da pessoa, não como impossível unidade entre corpo e alma ou outras – sendo corpo e alma entidades semânticas interiores ao sentido, não seus suportes –, mas como unidade de sentido, onde tudo, infinitamente tudo é chamado à relação, relação virtualmente infinita e em acto de infinitização.
A compreensão não é uma apreensão de algo alienígeno sobre o qual estendemos o império do nosso poder, mas a integração de uma unidade de sentido desgarrada em uma trama de sentido que a acolhe e a torna presente no que é em relação. Inteligir não é sair seja do que for para penetrar no interior seja do que for – como seria, aliás, isso possível? – mas encontrar o lugar próprio do sentido de algo que, integrando-se na trama significativa, passa a ter sentido: este sentido é criado pelo acto da inteligência, acto de integração semântica do que advém, mas que só advém exactamente porque a inteligência o integra. Coincide, pois, a inteligência com a abertura – mas uma abertura que é o próprio todo da unidade semântica – à relação, à adveniência.
Ao contrário do que se possa pensar, o trabalho interpretativo não reside nem em procurar esgotar campos de compreensibilidade – estes são sempre virtualmente infinitos, infinitos mesmo – nem em forçar elementos rebeldes a enquadrar-se em artificiais sínteses que mais reflectem a vontade de poder de quem as executa do que a realidade de um acto que não pode nem ser esgotado nem forçado: o que se obtém, por maior que seja a ilusão de domínio semântico do mundo, é sempre algo de não esgotado, de não acabado e de realmente independente da vontade de quem o produziu, se bem que não independente do seu acto de produção, mas invertendo as relações de poder, pois o que fica determinado é quem trabalhou na conquista do saber, pois foi por este conquistado, tendo este marcado para sempre o seu obreiro, sem que este possa dominar todas as relações que preparou ao produzir o que produziu.
Assim se vê, por exemplo, o porquê do essencial inacabamento da ciência, para grande desilusão dos que a prosseguem e perseguem não como meio de crescimento do seu acto próprio mas como forma de obtenção de poder: e o poder dado por uma ciência acabada seria o poder absoluto sobre tudo. Mas o tudo que, efectivamente e sem o saber, perseguem não é um tudo a seu modo, isto é, um tudo finito e abarcável, mas um infinito inabarcável: o progresso da ciência – no seu sentido mais lato – é infinito porque infinito é o mundo das relações que quer explorar. Não tem fim porque o seu progresso é uma actualização de relações que são virtualmente infinitas e infinitamente actualizáveis.
É esta a tarefa da pessoa como acto de mediação de mundo, mediação que é coincidente com a poética de tal mundo. Melhor ou pior poema, depende da mediação que somos.


Lisboa, Março de 2017
Américo Pereira



[1] PESSOA, Fernando, Livro do desassossego, por Bernardo Soares, Lisboa, Ática, 1982, p. 92.
[2] Este desejo, de essência política, manifesta-se hodiernamente na desenfreada corrida aos meios de comunicação, ilusoriamente imediatos e directos, que parecem fazer cair sob o nosso poder quer a distância – anulando-a – quer o tempo, anulando-o, também. A força da ilusão do poder obtido pela posse de tais meios é tal que nem se pondera a assimptótica distância em que permanecemos relativamente àquilo que é fundamental.

Parasitismo e bem-comum Os extremos ergonómicos do acto humano

O termo helénico «ergon» pode ser traduzido para a linguagem e contexto cultural e civilizacional hodierno como «trabalho». De facto, o seu sentido original aponta para o efeito de algo que lhe é interior e anterior ontologicamente e que é talvez o termo mais importante da nossa tradição intelectual ocidental, o termo «energeia», de onde quase transliterámos «energia», mas que tem como sentido semântico-ontológico profundo «acto».
O «ergon», trabalho e efeito-obra desse trabalho, é fruto de uma «energeia», de um acto.
O termo «nomos» tem o valor comum de «lei», em sentido geral. Lei não sobretudo como coisa humana e «positiva», como hodiernamente se pensa, mas como coisa cósmica, e mesmo trans-cósmica, como fundamento do próprio cosmos. A lei é isso que ergue isto que é o movimento que constitui o mundo propriamente em e como mundo, em algo de ordenado. Sem lei, neste sentido, não há mundo, há caos.
Compreende-se, então, o sentido profundo de uma «anarquia», que não é algo como um mundo, que seria mundo, ainda que sem legalidade humana-positiva, mas que é, antes, um não-mundo.
A lei não é função de juízo humano, qualquer, de qualquer forma, mas constitui o «princípio» que impede o mundo, o cosmos, de cair no caos, indiscernível, precisamente por causa da falta de ordem, do nada.
É um nada de sentido, e um nada de sentido em termos humanos é um nada absoluto de sentido, pois o ser humano ou é algo da ordem do sentido ou não é coisa alguma como propriamente humano. Não há sentido para as bestas. Para estas, não há mundo. O que há, nas suas múltiplas dimensões, é algo que nunca saberemos e as especulações projectivas são todas epistemologicamente inválidas.
Há, pois, uma ergonomia do acto humano, que situa ontologicamente os limites para a actualização da potencialidade humana. Esta actualização é toda a cultura em acto de produção da diferença ontológica que promana da agência humana, mas é também a cultura como produto presente e produto passado, monumental e memorial da acção humana. É, ainda, toda a possível cultura, que, realizada, será a concretização futura eventual da humanidade.
O ser humano não pode ultrapassar tais limites – ou não seriam limites –, pois, se situar a sua acção abaixo do limite inferior que ergonomicamente é o seu, transforma-se numa besta: não ultrapassa o limite, metamorfoseia-se em algo que já não é propriamente humano; por outro lado, por mais que faça, apenas alarga o domínio da sua actualidade, da cultura, portanto, sem que ultrapasse o limite. Digamos que acompanha o desvendar do horizonte, à medida que infinitamente dele se aproxima. Tal não é um horizonte, em seu sentido geográfico, que é alcançável, mas constitui, antes, uma assíntota, que coincide com a infinita vocação humana para o aperfeiçoamento próprio.
Aqui, nestes actos, o ser humano não se metamorfoseia como anteriormente, metamorfoseia o mundo, no que é, já foi dito, a poética cultural universal da humanidade.
Ora, esta ergonomia, se trabalhada por uma correcta «ergologia», isto é, se criticamente analisada, permite-nos perceber que tais extremos de acção humana como possibilidade tomam, no concreto mundano da acção, precisamente duas concretizações: a proximidade com o limite inferior constitui o parasitismo humano, consubstanciado na figura ética e política do tirano.
Por outro lado, o bem-comum é a própria aproximação à perfeição do acto humano, considerado quer na sua dimensão individual – ética – quer na sua dimensão colectiva – política.
Deste ponto de vista, que é ontológico, aplicado ao ser humano, sendo, assim, onto-antropológico, toda a acção humana se pode desenrolar e se desenrola, de facto, entre as realidades do parasitismo humano/tirania e do bem-comum, que, para usar um termo com ressonância também biológica como o termo «parasitismo», se pode designar por «simbiose», simbiose total e perfeita. Nada menos.
O bem-comum é a simbiose perfeita da vida ética e política da humanidade. Não é uma utopia, mas isso que, em acto, resulta da acção de cada um e de todos em prol do exclusivo bem-comum, que é, imediata e concomitantemente, também, o bem de cada um, individualmente considerado.
Neste ambiente verdadeiramente «ecológico», pois é o único que cuida do bem da casa, que constitui o seu sentido, o seu «logos», o melhor bem possível e real de todos é necessariamente o melhor bem de cada um. Tal realidade, que parece utópica, mas não é, reafirmamos, pode perceber-se ao ouvir, por exemplo, uma sinfonia tocada em humana perfeição, acto em que o todo ocorre como concretização do melhor possível, assim cada um dos todos recebendo também o melhor possível individual como recompensa. Note-se que a recompensa é o próprio acto da sinfonia e não outra qualquer coisa diferida, material ou não-material.
O acto de cada ser humano constitui a sua única real recompensa. Não há outra, nunca haverá outra. O céu, assuma ele a forma que assumir, é o bem próprio de cada acto, em seu mesmo absoluto. O mal é a ausência absoluta desse mesmo possível bem. Esta ausência é a definição ontológica de inferno, quer em termos religiosos quer em termos laicos.
Ora, céu e inferno estão presentes como possíveis no «acto nosso de cada dia» também como possível.
Concretizemos.
Quando recebo um bem da parte de um outro ser humano, de cuja produção o outro vive, e não lhe retribuo de forma justa o trabalho feito, estou literalmente a roubar possibilidade própria a esse outro; a guardar para mim um bem alheio, próprio para um outro, inalienavelmente seu como possibilidade própria, dado que é o que permite que esse outro possa ser e seja. Ora, este acto é sempre parasitismo.
Este parasitismo, próprio de um nível bestial da biologia e neste nível perfeitamente conforme com a sua melhor possibilidade, é, no nível humano, não uma sobrevivência atávica de uma bestialidade, que assim se compartilha, como se compartilha, por exemplo, a ventilação com os cães, que também ventilam, mas algo que, sendo humanamente possível, como próprio humano e não como sobrevivência de algo de alienígena, constitui a possibilidade humana de se ser besta.
Ora, este poder ser besta é a pior possibilidade propriamente humana que a humanidade possui. É humanamente possível, mas é humanamente degradante, conduzindo, no fim, por seu triunfo, a humanidade à aniquilação como propriamente humanidade: uma humanidade de predadores ou de parasitas – e a predação é uma forma de parasitismo, em termos humanos, não o sendo em termos das bestas não-humanas – não é verdadeiramente uma humanidade.
O parasitismo humano é antropologicamente aviltante, pois anula a possibilidade de bem próprio nesse que parasita. É o ser humano a negar a humanidade, que é também a sua, ao outro ser humano.
Num mundo em que foi sempre o regime de parasitismo humano que imperou, que conheceu por breve tempo a procura de realização de um forma de relacionamento entre as pessoas que anulasse tal parasitismo, tendo como fim orientador a possibilidade não-utópica do bem-comum, que está a retornar despudoradamente ao reino universal do parasitismo, não restam senão dois caminhos antitéticos: ou se opta universalmente pela lógica do bem-comum e, assim, a humanidade terá viabilidade como humanidade e não apenas como facto histórico de bestas com forma humana ou terá de dar a provar aos parasitas o gosto da sua própria receita, o que significará uma tragédia de imensas proporções, de que pode ou não emergir uma verdadeira humanidade, podendo, mesmo, não emergir humanidade alguma.
Não fujamos às trágicas consequências do que pode estar aqui em jogo: o que se está a afirmar é a triste possibilidade segundo a qual pode ter de ser necessário eliminar todos os parasitas humanos para que a restante humanidade possa sobreviver. Tal é terrível, mas tal pode tornar-se na eventual trágica opção melhor viável.
Esperemos que os seres humanos tenham o claro discernimento de passar a optar pelo bem-comum.
Fevereiro de 2017
Américo Pereira


Pensar a pobreza hoje à luz de São Tomás de Aquino

Pensar a pobreza é tarefa para uma vida e que, além disso, cabe no âmbito de várias ciências. Sendo a nossa área de trabalho e de estudo a da Filosofia Medieval, propomos hoje revisitar as considerações de São Tomás de Aquino acerca da pobreza. Ainda que tenha falecido há cerca de sete séculos e meio, muitas das suas reflexões são transversais, fazem sentido no seu e no nosso tempo; não é por acaso que é o Doutor Comum (no sentido de universal) da Igreja. Consideramos que, em particular, as suas observações sobre a pobreza se revestem de alguma atualidade merecendo, por isso, ser revisitadas.
 Dividimo-las em três partes – a pobreza perspetivada por quem: 1) a escolhe; 2) não vive nela; 3) lhe está submetido.
1. A pobreza escolhida
Um dos capítulos de Saint Thomas Aquinas, obra redigida por Chesterton para divulgação da vida e do pensamento do Angélico, intitula-se «O Abade fugitivo» («The runaway Abbot»), precisamente porque o jovem Tomás renunciou aos planos traçados para um dia substituir o seu tio Sinibaldo, Abade de Montecassino. Tomás escolheu ser frade mendicante para melhor seguir o exemplo de Cristo. Viver de esmolas é viver com Cristo porque também Cristo mendigou, sendo este um exercício eficaz contra a soberba (cf. Suma de Teologia II-II q187 aa4-5). O mestre dominicano defende a legitimidade de o religioso viver de donativos (na condição de se dedicar às atividades próprias da vida religiosa). Assim como Cristo pregou vivendo na pobreza, também os pregadores da palavra de Deus devem estar livres dos cuidados seculares, para que se possam entregar totalmente à pregação (cf. Suma de Teologia III q40 a3).
A radicalidade desta opção de vida fundamenta-se em alicerces sólidos. A escolha da simplicidade, da frugalidade, da sobriedade não resulta de uma autotortura através da privação, mas da consciência de que os bem temporais são incompletos e efémeros; incapazes, por isso, de saciar o ser humano. Esta clarividência não é partilhada por todos restringindo-se a opção pela pobreza evangélica, por isso, a uma minoria.
2. A pobreza, do ponto vista de quem não lhe está (pelo menos no presente) sujeito
Os evangelhos relatam-nos que Cristo não apenas viveu de esmolas como também conviveu, comeu, bebeu, frequentou festas, a fim, diz São Tomás, de nos mostrar que a vida reta não requer necessariamente a austeridade e abstinência. Com efeito, se João Batista escolheu uma vida austera, alimentando-se de gafanhotos e mel silvestre (cf. Mateus 3,4), o mesmo não o fez Cristo, que comeu e bebeu com os publicanos (cf. Suma de Teologia III q 40 ob1, ad1). Cristo quis ser exemplo para todos – e a pobreza evangélica não tem que ser escolhida por todos.
O Aquinate defende, com Aristóteles, que a virtude se encontra no justo meio entre os extremos. Afirma, pois, que a abundância de riquezas e a mendicidade são de evitar porque proporcionam ocasiões para pecar (por exemplo: a primeira facilita o orgulho; a segunda favorece o surgimento do roubo e da mentira). Elas não ditam que a pessoa que as enfrenta cometa o pecado (em última instância, o ser humano é quem escolhe), mas criam as condições que propiciam a sua ocorrência. Se todos tiverem o necessário para o seu sustento, a vida na sociedade será mais sã e decorrerá de modo mais pacífico (cf. Suma de Teologia II-II q66 a2 co). A existência da propriedade privada é benéfica na medida em que otimiza a gestão e a ordem sociais, evitando a incúria e a confusão. Constata Tomás, que as pessoas põem mais cuidado em preservar aquilo que lhes foi confiado individualmente do que aquilo que foi entregue ao cuidado de muitos (cf. Suma de Teologia II-II q66 a2 co).
São Tomás aconselha a pessoa que está numa situação social em que não enfrenta a penúria a, no entanto, pautar-se pela sensatez e satisfazer-se com pouco (cf. Suma de Teologia II-II q66 a1 co). A liberalidade, virtude que pode ser praticada por quem vive na abundância mas também por quem passa dificuldades (com efeito, a questão não é o quanto pode dar mas o facto de dar), encontra-se entre dois extremos; a avareza e a prodigalidade; e é liberal aquele que atende aos outros sem se negligenciar a si ou à sua família (cf. Suma de Teologia II-II q66 a1 co, ad1, ad2).
3. A pobreza que oprime
Um dos pontos interessantes da reflexão tomista sobre a pobreza é o facto de a perspetivar não apenas do lado de quem a escolhe e do lado de quem a socorre mas também do lado de quem lhe está sujeito, sem opção. A sua posição a este respeito decorre da condição do ser humano como guardião, mas não verdadeiro senhor da Criação (cf. Suma de Teologia II-II q66 a1 co). De acordo com o direito natural, tudo é de todos; é apenas para a garantia da ordem que a razão humana estabelece, por convenção, a propriedade privada. A propriedade privada resulta, portanto, do direito positivo, não do direito natural (cf. Suma de Teologia II-II q66 a2 ad1). Mas o que legitima a justiça ou injustiça do próprio direito positivo é a sua maior ou menor conformidade com o direito natural. Porque nada é verdadeiramente nosso, o Doutor Comum afirma que os bens devem ser partilhados com os outros que sofrem com alguma necessidade (cf. Suma de Teologia II-II q66 a2 co) – porque a supressão desta necessidade é exigida pelo direito natural.
São Tomás recusa subjugar o valor da dignidade humana ao valor da propriedade privada. Defende, por isso, que, em caso de necessidade, aquele que está sujeito a privações de tal ordem que ameaçam a sua vida tem pleno direito de subtrair, a quem tem mais do que o necessário, o que for preciso para garantir a sua sobrevivência. Nesta perspetiva, aquele que vive na pobreza não tem de se resignar à passividade – porque se a necessidade for tamanha que uma pessoa não se possa salvar a si mesma ou não possa ser salva por outrem de outro modo, é legítimo que a pessoa, ou aquele que a pretende salvar, se apodere do bem alheio – manifesta ou ocultamente (cf. Suma de Teologia II-II q66 a7 co, ad3).
Pode perguntar-se: apropriando-se do bem alheio, estará a furtar? Afinal, o furto atenta contra a caridade, contra o amor ao próximo, e a sua generalização implicaria o fim da sociedade (cf. Suma de Teologia II-II q66 a6 co). Defende o Angélico que aquele que rouba por necessidade não incorre em pecado; antes reivindica para si a parte que lhe cabe legitimamente pelo direito natural. Em caso de necessidade, explica, não há propriamente propriedade privada: «Na necessidade todas as coisas são comuns. E, assim, não parece haver pecado se alguém toma uma coisa de outrem, porque a necessidade fez dela um bem comum para ele» (cf. Suma de Teologia II-II q66 a7 sc).
A gestão dos bens dentro de uma sociedade deve ser feita de tal modo que não falte o essencial a um dos seus membros, porque tal constituiria um atentado contra o direito natural, que estabelece que todos os bens são de todos. Todavia, em todas as sociedades os desequilíbrios acontecem (por diversas causas: sociais, naturais, etc) e as situações de necessidade irrompem decorrendo daqui a obrigação moral de ajudar o próximo, corrigindo esse desequilíbrio. Se alguém possui mais bens do que os necessários para o seu sustento, vivendo na abundância, tem por obrigação auxiliar quem está na penúria, já que os bens que aparentemente possui não são verdadeiramente seus (cf. Suma de Teologia II-II q66 a7 co).
Em suma: se a pobreza escolhida é meritória, o mesmo não se pode dizer da pobreza que tiraniza as pessoas, delimitando e encurtando os seus horizontes e as suas opções, amesquinhando a dignidade humana.
Em momentos históricos como o nosso, em que se discute a nível europeu e mundial o que fazer com números avassaladores de refugiados migrantes e em que, a nível nacional, os mínimos salariais estão longe de garantir uma vida confortável às famílias portuguesas, a reflexão com mais de sete séculos feita pelo Doutor Comum tem, pelo menos, o mérito de nos desinstalar e desafiar.

Inês Bolinhas

Fevereiro 2017