O livro sobre que este artigo se
debruça consta de um «Prefácio», de uma «Introdução» e de nove Capítulos,
constituindo memória da Summer School / Escola de Verão que as Faculdades de
Teologia e de Ciências Humanas da Universidade Católica Portuguesa realizaram
no verão de 2016, em Lisboa.
O tema que orienta as várias reflexões
exaradas nesta obra é o do «entendimento global e compromisso com as
periferias», que põe num mesmo tabuleiro político – entendida a política em
sentido nobre de busca de um possível bem-comum – quer o sentido de uma
universalidade quer a sua superlativação como globalidade que se assume como
tal e que, por isso, não esquece que é constituída também pelas periferias.
O mundo é mesmo um só e a não assunção do periférico como próprio
seu originará uma irrecuperável fractura que porá em termos agónicos grande
parte da humanidade contra a restante. De notar que provavelmente isso que se
considera ser o periférico será numericamente o mais significativo.
Infelizmente, ainda este modo de pensar é, se bem que de forma involuntária,
etnocêntrico.
As preocupações de Francisco, o Papa,
que são o pano de fundo teórico que dá horizonte cénico a este esforço de
reflexão, são objectivas, logo, pertinentes, mas também são urgentes em sua
pertinência.
«O mundo em que se vive
contemporaneamente é o mundo em que se globalizou não a instrumentação veicular
do bem anti-periférico, mas a sua activa negação, vivendo nós, aqui e agora, um
movimento radicalmente agressivo – isto é, realizado por pessoas agressivas –
de retorno a formas de relação ética e política entre seres humanos que não se
pode não considerar senão como um processo de re-escravização, por mais
esforços que os seus mentores façam por convencer os seus objectos – a grande
maioria dos seres humanos actualmente existentes – do contrário.».
«Neste sentido, o movimento do mundo
desde o fim da Segunda Grande Guerra tem consistido fundamentalmente numa
progressiva eliminação de tudo o que tinha sido obtido em termos de humanização
ética e política das relações entre os seres humanos, que culminara na
Declaração Universal dos Direitos Humanos, carta de princípios, não carta de
valores, isto é, que estabelece algo sem o qual a humanidade não tem futuro,
não meras opiniões ou meros ecos de tradições que não respeitem princípios.»
Boa parte da modernidade dedicou-se a
matar «Deus» e o «Homem». Tal implica consequências. Há que encontrar
substitutos e tais substitutos não deixam de ser também produtos culturais. Isso
que um qualquer factício conceito de «Homem» não pode substituir – o real ser
humano, a real pessoa, os reais homem e mulher – existiram e operaram, agiram
enquanto acontecia o que acontecia em Auschwitz, na ausência do deus morto e do
Homem nunca nascido.
Algumas dessas pessoas anteciparam-se
mesmo a Auschwitz, eliminando, para muitos, a negativa possibilidade do seu
«pessoalíssimo Auschwitz». Referimo-nos à acção de pessoas como o nunca
suficientemente mencionado Aristides de Sousa Mendes; pessoas que não invocaram
em vão o nome de Deus, do vivo ou do morto, antes, negando o absolutamente vão,
a vanidade da impotência dos discursos auto-apologéticos dos cobardes e a
vileza dos oportunistas, salvaram, activa
e penosamente salvaram, outras pessoas, assim matando o mal pela raiz, fazendo o bem. Aliás, é este o único
modo real, eficaz.
Em tais tempos, os «homens» reais
estavam também lutando contra todas as formas de fascismo nas diferentes
frentes de batalha e morreram aos milhões, sem esperar pela ressurreição filosófica
do deus morto que os impotentes querem que faça, por eles, mais uma vez e
sempre, o seu trabalho em qualquer Auschwitz. Ontem como hoje.
Ontem como hoje, são estas pessoas
reais as que criam, laboriosamente, sempre, penosamente, muitas vezes, isso que
é o real entendimento, entendimento
no e pelo bem.
Ora, apenas o entendimento, o mais global e efectivo permite isso que deve ser o outro nome da humanidade: o bem-comum.
De forma exacta, deveria dizer-se «entendimento
universal», pois não há verdadeiro entendimento passível de perenidade não
antecipadamente limitada sem que seja necessariamente universal.
Trata-se de realizar o bem-comum para
todas as pessoas, sem excepção, em cada momento, sempre.
Não é isto uma utopia, mas a intuição
da possibilidade de uma existência política, de base ética, em que todos os
seres humanos possam, e, de facto, sejam
o melhor que podem ontologicamente ser, em universal e total harmonia. É este o
entendimento como padrão de possibilidade.
Ora, este livro, sem manias de grandeza
quaisquer, é um singelo contributo para o trabalho em prol do entendimento
universal.
Aqui, podemos encontrar capítulos
escritos por especialistas de vários âmbitos do saber, da Engenharia Nuclear, à
Filosofia, da Antropologia, à Comunicação Social e à Teologia. Trabalha-se o
tema do «entendimento global» de forma transdisciplinar, aportando reflexões
pessoais cientificamente fundamentadas sobre relações a montante e a jusante da
«realidade entendimento».
O sentido da «globalidade» impõe-se,
como se depreende da própria leitura integrada dos vários capítulos, porque a
humanidade evoluiu, quer de tal haja suficiente consciência ou não, para um
modo de existência em que já constitui, sobretudo fisicamente, devido à
facilidade das deslocações de pessoas, de bens e até de meios de destruição, um
inegável todo. A globalização já não é apenas um processo, é, mesmo, já um
facto. Pense-se no que seria, pela negativa, um surto de varíola que surgisse,
por exemplo, num grande evento internacional qualquer e como se «globalizaria»
de forma fulminante. Não perceber este novo estado – que tem dimensão
verdadeiramente ontológica, onto-ecológica, se se preferir – é estar alienado
da realidade.
No primeiro capítulo, «Erradicação da
pobreza: diagnóstico e soluções», Eugénio Fonseca, traça um lúcido e
substantivo perfil das pobrezas, pois são várias, baseado em dados fidedignos e
que deveriam tornar evidente a dimensão do problema, mormente em Portugal,
estudado com detalhe, que revela quer a sua enorme dimensão quer a sua
profundidade: pobres, muitos e muito pobres, grande parte deles. Realidade
tendencialmente ignorada, num mundo de marketing político que visa a auto-promoção
da oligarquia junto da oligarquia: estas últimas palavras são da nossa
responsabilidade estrita. Sendo a pobreza algo de «económico», no sentido mais
vasto desta noção – que é política –, algo como uma crise económica
necessariamente agrava a situação dos pobres, a grande periferia económica de sempre.
No entanto, a magna questão relativa à pobreza não é a da sua contemplação
teórica, mas a da acção que tenha como fim eliminá-la. Eugénio Fonseca dedica a
parte final da sua reflexão à proposta de soluções pragmaticamente viáveis, a
nível global: alteração do sistema económico, política redistributiva mais
justa, política de erradicação que incida nos “mais pobres”, combate ao
desperdício, dar voz aos pobres, assunção da pobreza como problema de todos; ao
nível de Portugal: maior envolvimento dos chamados “políticos”, adopção de uma
estratégia integrada, avaliação dos impactos das políticas sociais, reavaliação
e adaptação das políticas susceptíveis de aumentar a pobreza, debate anual na
Assembleia da República sobre o problema.
No segundo capítulo, Micael Pereira
reflecte sobre «Cultura e desenvolvimento sustentável numa perspectiva
antropológica», mostrando inequivocamente que apenas a integração sem qualquer
desvalorização ontológica de humanidade e meio ambiente pode permitir a
continuidade sustentável das gerações de seres humanos em são convívio com isso
que constitui a transcendência física mundana, aliás, possível abertura para um
outro sentido de transcendência, já metafísica.
Em «A necessidade da diversidade
cultural», Américo Pereira mostra como a humanidade só é possível como diversa,
correspondendo a anulação da diversidade à aniquilação do futuro da humanidade.
Manuel Cândido Pimentel, no capítulo
dedicado ao «Diálogo intercultural e conhecimento. O paradigma da ecorracionalidade»,
fundamenta o que designa por uma «nova consciência que presida à economia»,
erguida sobre uma nova forma de racionalidade, a «ecorracionalidade», que
consiste numa «disposição do conhecimento, uma tendência à instauração de uma
consciência racionalmente aberta ao mistério da natureza na sua alteridade.».
O Autor termina apresentando um conjunto de princípios de «interculturalidade
dialógica», ancilares do novo modo de racionalidade aqui proposto.
No capítulo da responsabilidade de Nelson
Ribeiro, «Os Meios de Comunicação ao Serviço do (Des)Entendimento Global», é
pensado o multímodo papel dos media
num mundo efectivamente globalizado, pondo em destaque o que são as suas
contribuições quer para o entendimento quer para o não-entendimento, mas
fazendo ressaltar a incomparável capacidade de colaboração de tais meios para
uma real melhoria da existência humana, se usados em tal sentido: «[…] os media
podem contribuir para um melhor entendimento entre a humanidade, tal depende
dos objectivos que norteiam o uso que deles é feito.».
Margarida Amaral, no capítulo dedicado
a «Um olhar cultural sobre a natureza», trabalha reflexivamente a relação entre
natureza e cultura, chamando a atenção para que «a compreensão de que existe um
elemento comum ao homem e à natureza nos leva a ultrapassar a dicotomia,
entendida como separação absoluta entre o natural e o humano, […] a natureza e
a cultura».
Para tal, a educação assume especial relevo: «Ser um homem culto é, afinal,
assumir preocupações ambientais e é compreender que os problemas ambientais,
sendo um reflexo do seu comportamento cultural, só podem ser atenuados
recorrendo a uma educação que fomente a própria cultura […]»,
cultura que é «saber, aprofundamento, procura»,
não de satisfações efémeras, mas de um sentido propriamente humano em que a
natureza é complementar do humano, não sua antítese.
No capítulo «O contributo das ciências
naturais para a paz», António Marques de Carvalho começa por mostrar como a
humanidade chegou ao estado de desenvolvimento e ecológico em que se encontra,
definindo as ameaças com que nos confrontamos, sem esquecer que o horizonte que
permanece válido é o de «uma ecologia integral»,
como salienta o Papa Francisco. Se, por um lado, «sem uma ampla divulgação dos
conhecimentos e da solidez do método científico, não será possível assegurar os
consensos que, nas democracias, permitirão aos políticos ter a coragem de tomar
medidas para cuidar do planeta a longo prazo»,
por outro, «o conhecimento científico da história da Terra e dos recursos
minerais, o conhecimento dos ecossistemas e da biodiversidade e da interacção
com as práticas económicas e sociais permitem uma melhor gestão dos recursos
para um futuro pacífico e sustentável.».
José Manuel Pereira de Almeida, no
capítulo dedicado a «Paz e entendimento, categorias Teológicas», partindo da
constatação antropológica e ética de que «todos podemos trazer uma bomba dentro
de nós»,
interroga: «que ‘bombas’ trago dentro de mim?».
Percebendo a radicação da violência praticada no seio do «coração violento»,
assinala a «cultura de violência»
em que vivemos, produto humano que não necessita de seres humanos especialmente
perversos, mas se contenta com «a mediocridade habitualmente aceite»:
«a eficácia histórica do mal passa através do consenso à volta de um deixar andar as coisas como elas vão».
Reflectindo sobre a «violência legitimada»,
a «não-violência como fraternidade»
e «a vida como dom», bem como o
papel dos cristãos, aponta o caminho – simples e difícil – para a construção da
paz: «trata-se, normalmente, de dever fazer o pequeno bem aqui e agora
concretamente possível para mim.».
Uma leitura atenta revela que este bem, ainda que manifestamente ético e
político, é, como condição de entendimento e de paz, da ordem do ontológico: é
o que é o possível nosso de cada dia.
No capítulo dedicado a «A inculturação ou a questão da “evangelização
e diálogo cultural”», José Nunes começa por distinguir «inculturação» de outros
termos, que reflectem realidades muito diferentes, como «enculturação» ou
«aculturação». Assumindo o termo «cultura» como usado em ciências sociais,
mantém a relação com a noção de «factor de auto-transcendência e humanização de
todo o homem e de todos os grupos humanos».
O paradigma de inculturação é o próprio Jesus, que assimilou a sua cultura,
transformando-a, tendo, por vezes, de combater o que tinha de ser combatido
porque era factor de desumanização. Expondo os fundamentos antropológicos e
teológicos do conceito, bem como o processo de inculturação, percebe-se que
esta se cumpre quando, fiel ao paradigma: «[…] a sua atitude é a de quem assume
recriando a tradição cultural herdada. O assumir da cultura judaica era, para
Jesus, uma questão de levar às últimas consequências a realidade da Incarnação
[…]».
Os vários capítulos, na sua diversidade
de abordagens, entre muitas outras contribuições para a compreensão do tema do
entendimento global e compromisso com as periferias, mostram que a acção
humana, num regime de entendimento, mais do que global, universal,
tendencialmente elimina as periferias, não
através da fácil violência da aniquilação do diferente ou do incómodo, mas
através da, por vezes muito difícil, acção ética e política – cultural no seu
melhor sentido – de cada ser humano como deposição do bem de que é capaz no
tesouro comum (bem-comum) de uma humanidade que chegou a uma fase da sua
evolução em que ou vive como um todo tendencialmente em entendimento ou,
simplesmente, não tem condições de sobrevivência.
O concreto da realidade hodierna parece
com forte evidência dar razão a esta tese. A via do entendimento universal
humano é, assim, a via única da vida humana, a sua ecologia de possibilidade de
futuro.
Cumpre, com grande alegria, ao
coordenador desta obra e director da Escola de Verão / Summer School que lhe
deu origem, expressar o mais profundo reconhecimento a todos os que
contribuíram para o sucesso de ambas as iniciativas.
Assim, saudamos os Autores da obra:
Eugénio Fonseca, Fernando Micael Pereira, Manuel Cândido Pimentel, Nelson
Ribeiro, Margarida Amaral, António Marques de Carvalho, José Manuel Pereira de
Almeida, José Nunes: é o seu trabalho que permite esta apresentação;
Saudamos o Senhor Presidente da Cáritas
Portuguesa, Prof. Eugénio Fonseca; saudamos todos os que contribuíram para a
construção e publicação da obra em apresentação, especialmente o Senhor
Engenheiro António Lages Raposo e a Senhora Drª. Luísa Correia e restante
equipa;
Seria da maior ingratidão não saudar
todos os que trabalharam para que o acto de pensamento que esteve na origem
científica desta obra, a Escola de Verão dedicada ao tema homónimo do livro,
pelo que nos achamos na obrigação de o fazer:
Deste modo, agradecemos à Exma. Senhora Profª. Doutora Maria da
Glória Garcia, Magnífica Reitora da Universidade Portuguesa; ao Exmo. Senhor
Dr. Jorge Lobo de Mesquita, Presidente Substituto da Comissão Nacional da
UNESCO, em substituição da Senhora Presidente; ao Exmo. Senhor Prof. Doutor
João Duarte Lourenço, Director da Faculdade de Teologia; ao Exmo. Senhor Prof.
Doutor Nelson Ribeiro, Director da Faculdade de Ciências Humanas; ao Exmo.
Senhor Prof. Doutor Manuel Cândido Pimentel, Coordenador da Área Científica de
Filosofia; ao Exmo. Senhor Prof. Doutor Carlos Morujão, Director do Centro de
Filosofia da UCP; ao Exmo. Senhor Doutor Joaquim Melro, Director do Centro de
Escolas António Sérgio; à Exma. Senhora Drª. Elizabeth Silva (UNESCO);
Uma
palavra de bem-haja é devida aos Moderadores das sessões da Escola: Profª.
Doutora Inês Bolinhas, Mestre Juan Ambrosio, Dr. Paulo Rocha.
Ao
Director Pedagógico da Escola de Verão, Mestre Juan Ambrosio, agradecemos os
sábios conselhos, também os relativos à elaboração do livro.
Inclino-me
perante o trabalho de mediação dos Membros das Comissões Científica e
Organizadora/Executiva: apenas os que ainda não foram mencionados: Prof. Doutor
Samuel Dimas, Mestre Cecília Tomás, Mestre Francisco Vaz, Drª. Ana Paula Graça,
Exma. Senhora D. Elisabete Carvalho, Exmo. Senhor Nuno Lopes.
Especial
destaque merece a acção irrepreensível e de uma impecável
dedicação da Mestre Marta Salvador, a quem devemos a composição do tema gráfico
da capa do livro e a quem dedicamos um carinhoso bem-haja.
Lisboa, de Junho de 2017
Américo Pereira